@retratodaleitora 09/01/2016Intenso"A cada ação, uma pequena reação. Às vezes era instinto mesmo: de gata siamesa esquálida e abandonada. Tanto que não suportou o pulo do guepardo. Tão mole e inocente. (...) Achava-se miúda na multidão. Achava-se imensa na desgraça."
Soraia está fugindo. Uma mulher simples e abalada andando sem rumo na cidade grande. Ela escapara do salto do guepardo. No chão brilhante - devido às horas que passou esfregando-o - ela viu a verdadeira face do animal, que já não merece ser chamado homem. O apartamento limpo, brilhante e cheiroso que ela fora contratada para limpar, agora é cenário de crueldade; do horrível salto que a pegou de surpresa e a deixou desnorteada. Ela vagueia por ruas e mais ruas, mas nada sabe sobre a cidade e menos ainda como voltar pra sua casa, no interior. Seu dinheiro está no apartamento. Teria ela a coragem necessária para pegá-lo?
Como um fantasma ela vaga sem rumo pelas ruas amontoadas de pessoas desconhecidas e ignorantes de sua situação delicada. Ela foi marcada. Agora possui uma mancha tão conhecida em si mesma. Igualmente difícil de ser retirada.
A cada esquina, rua ou quarteirão, a sombra do que lhe aconteceu a persegue. Pesadelos horríveis a lembram do fatídico momento em que perdeu sua inocência, sua vida, seus sonhos e suas emoções no chão daquele apartamento, cenário da barbaridade do guepardo.
Sabe aqueles sonhos esquisitos que às vezes temos e sobre os quais não conseguimos explicar? Sonhos onde estamos fugindo de alguma coisa, mas não sabemos ao certo de quê ou de quem? E quando esse sonho muda, abruptamente, e agora estamos na visão do perseguidor? Já sonhei com isso. E foi assim que me senti realizando essa leitura: em um grande sonho esquisito e inenarrável.
Infelizmente, para nossa protagonista, não é apenas um sonho.
Já começamos a leitura acompanhando fuga de Soraia, mas sem saber o que lhe aconteceu e o porquê da situação. São várias as "peças" que a autora distribui em todo o livro para que possamos juntá-las e assim descobrirmos o que aconteceu à Soraia.
Algo que fica logo aparente é a falta de diálogos e, com isso, a leitura se torna um pouco mais densa e demorada que o normal. A escrita da autora é bem detalhada e possui ainda alguma simbologia, como usar o guepardo ao se referir ao vilão da estória e também a "mexeriqueira" ou "mexericas" que é um termo usado por alguns personagens em tom de melancolia, raiva, e lembranças da infância. Mas sobre isso ficamos entendidos durante a leitura, também.
"Dentro da jaula, o guepardo não era mais um felino sagaz. Sentia-se sem forças, confuso. (...) Era um homem com segredos e rastros. De guepardo a frango amedrontado."
Por ser um livro muito curto, com suas 100 páginas, são poucos os personagens. Mas, ainda assim, a autora consegue montar um elenco de dar inveja a muitos livros "grandes". Cada um tem suas características muito bem exploradas e narradas.
O livro é narrado em terceira pessoa, temos tanto a visão de Soraia quanto a visão do Guepardo, ou do homem que lhe machucou. Durante a trama, ele procura outra vítima.
Em seu primeiro romance publicado, Munique aborda temas como a violência, abuso físico e psicológico e manipulação direta ou indireta, além do machismo. Tudo de forma por vezes muito crua, e por vezes até poética. Como eu disse, parece um sonho estranho, e não existe quase linearidade em sonhos assim.
Munique Duarte deu um show de simplicidade em ''O Salto do Guepardo'', mostrando que o pouco é mais quando bem desenvolvido. Além de surpreender o leitor com os saltos dos personagens durante o enredo. A personagem principal, Soraia, chegou a me lembrar a inesquecível Macabéa, de A Hora da Estrela, e esse é um senhor elogio.
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