Che 25/07/2017
AMONTOADO CONFUSO DE REFERÊNCIAS
Os gênios também erram. Só assim pra explicar que alguém do nível de um Alan Moore - autor de várias das melhores histórias em quadrinhos que li até hoje - concebeu um roteiro desses, com várias limitações e confusões. E ele foi dar essa pisada na bola logo com sua série "Liga Extraordinária", cujo primeiro volume era ótimo e o segundo, que mergulhava de cabeça na obra de H. G. Wells e tinha momentos chocantes ou eletrizantes no final, conseguiu ser praticamente perfeito.
Todavia, são muitos os problemas desse terceiro volume. O maior deles é querer ser um amontoado jogado às pressas e sem grande desenvolvimento de referências não só à literatura de fantasia/ficção-científica do século XIX, mas também várias outras da cultura pop televisiva, cinematográfica, de outros países (principalmente França e Alemanha, que tem suas próprias equipes de super-heróis e super-vilões) - e ainda por cima quer juntar isso tudo passando por três épocas diferentes ao longo de cem anos!
Ufa! Haja fôlego pra acompanhar essa mixagem caótica e quase sempre rasa do desfile de referências que vão de "O Gabinete do Doutor Caligari" a "De Volta Para o Futuro", passando pelo "Bebê de Rosemary" - mas em quase todas essas incursões, com a profundidade de um pires. Há um momento em que se chega ao cúmulo da apelação (e do ridículo) de convocar ninguém menos que MARY POPPINS para os quadros do último arco - e numa cena chave.
Ficou parecendo que Moore fez essas citações só pra contextualizar a época e tentar fazer demagogia com os leitores mais deslumbradinhos com esse tipo de estratégia do tipo 'catálogo de referências', os quais vão adorar ficar esmiuçando uma a uma as deixas do autor sobre as citações. Pra mim, todavia, essa bobagem sacrificou o volume três e serviu só pra dissimular a falta de uma aventura mais divertida e carismática, algo que acontecia com folga nos dois volumes anteriores.
O final apoteótico do volume 2, que terminava sugerindo uma fragmentação da Liga (sem falar na morte de alguns membros), acabou custando caro para esse terceiro volume, na medida em que tiveram que enfiar personagens sem graça nenhuma - aliás, sequer tem poderes ou feitos mais gloriosos - pra compor a nova Liga e tapar as lacunas deixadas pelos falecidos. Desse modo, além de Allan e Mina (agora jovens e quase imortais), temos três novos personagens insossos e desinteressantes, dos quais só o transexual Orlando vai participar com mais ênfase até o desfecho. E o casal da 'velha guarda' também está pouco cativante, em especial Allan Quatermain, alternando entre patético e inexpressivo do começo ao fim. A única personagem realmente interessante é a sub-explorada descendente rebelde do capitão Nemo, que some de vista a partir da segunda parte.
Moore se mostrou particularmente irritante e preguiçoso em dois pontos. Irritante com aquela galhofada de ficar inserindo musiquinhas e rimas a torto e a direito nos diálogos, o que ele tenta disfarçar com textos de conotação sexual metidos a espertos. E preguiçoso no desenvolvimento absolutamente idiota da trama do antagonista, que envolve uma patacoada sem graça de misticismo, bruxaria, transferência de corpo/espírito e o 'retorno do anticristo'. Ah, que saudade dos marcianos beligerantes do volume 2!
Apesar dessa malhação toda que fiz do roteiro, ele não chega a ser um lixo total. Tem momentos interessantes envolvendo a sexualidade de Mina e Orlando - aliás, sexo foi a tônica desse volume 3, o que impediu que a história fosse ainda mais chata. O desgaste de Mina com a imortalidade, já meio cansada da juventude eterna, naquele estilo do filme "A Morte Lhe Cai Bem" do Robert Zemeckis, rende alguns bons momentos. E o humor muitas vezes funciona, principalmente envolvendo o choque cultural da protagonista vitoriana na putaria desenfreada da era hippie.
Encarregado do desenho, mais uma vez, ficou um certo Kevin O'Neill. É um traço quadradão, meio esquisito, que eu particularmente não sou muito chegado, embora não me incomode. Pra minha surpresa, todavia, na leitura desse terceiro volume eu até consegui apreciar um pouco mais, muito embora eu continue não achando nada de memorável. O'Neill foi particularmente mais exigido (e deu razoavelmente conta do recado) no arco 'psicodélico' da segunda parte, passada nos anos sessenta, transbordando a revolução sexual daquele período. Os quadros são acertadamente oblíquos e coloridos. Na primeira e terceira parte, o traço é ok.
Todavia, perto do que eu esperava, tanto da série quanto de seu autor, "Liga Extraordinária 3" é uma decepção. De Alan Moore eu sempre espero histórias nota oito, no mínimo. Essa aqui merece um cinco e olhe lá. E já estamos sabendo que a última história que ele vai publicar antes da aposentadoria na nona arte é justamente na série da Liga. Quem sabe ele possa redimir essa besteira do volume 3 e fazer uma narrativa mais aventuresca e menos recheada de referências inúteis...