Corpos furtivos

Corpos furtivos Chico Lopes




Resenhas - Corpos furtivos


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Krishnamurti 12/09/2016

CORPOS FURTIVOS DE CHICO LOPES – RETRATO DE UMA ÉPOCA DE DISSOLUÇÃO
Os romances que deixam marcas na memória dos leitores, e certamente asseguram lugar na história literária, são aqueles que, via de regra, contém o que poderíamos chamar de camada residual após a sua leitura, ou seja, aqueles que trazem-nos respostas (ou situações) às perguntas que cada geração formula de um modo novo acerca dos problemas de sempre: quem somos? Donde viemos? Para onde vamos, e como vamos? O que é afinal esse tal de amor? Etc. Questionamentos que uma vez levantados, constituem o núcleo residual das obras como se fosse um núcleo a irradiar força. Aquele registro da faceta persistente na criatura humana, enquadrando-a em situações que desde sempre se repetem, embora sob outros cenários e circunstâncias, enfim, novas e insólitas experiências existenciais. Aquilo que perdura para além das contínuas mudanças de tudo.
Sempre foi assim em matéria literária, a despeito do reconhecimento, ou não, da crítica da época em que as obras foram escritas. A despeito de o autor ser aceito, ou não, nas panelinhas literárias – que é outra história bem diferente da crítica - , ou a despeito mesmo, da tal glória duvidosa que tanto fazem questão de ostentar certos figurões do momento que passa.
Um romance que deixa um resíduo interno como obra de arte, é aquele que consegue também, captar a realidade viva em perpétuo fluir, e dela faz o material de sua ficção, observando-a não como ato da vontade do autor, mas deixando-se impregnar, na sensibilidade, por tudo quanto lhe passa ao alcance dos sentidos. Esta observação transformada em imaginação criadora, converte-se no meio de cultura onde se desenvolve o texto. E, quando então, o autor, soma a isto tudo – sim, porque é muito -, a capacidade de o fazer metendo-se convincentemente na pele de uma personagem de sexo oposto, causa-nos redobrada admiração. É o que acontece no romance “Corpos furtivos” de Chico Lopes.
A trama se passa em alguma cidade do interior de São Paulo. Uma ambiência originalmente bucólica que o passar do tempo e a chegada do progresso, transformaram em caricatura de cidade cosmopolita. Essa transformação física, a par com a miscigenação racial da sociedade brasileira está exemplarmente exposta no romance, deixando transparecer nossas mazelas raciais:
“Brutos. Vulgares. Eram o que Wanda chamava de 'gentinha sem berço', como se alguma vez sua família houvesse sido aristocrática e, pobre e aventureira como qualquer outra nos velhos tempos da cultura cafeeira, não houvesse pisado ali como meros imigrantes, se misturando aos outros italianos, aos espanhóis e japoneses e morando sob a sombra de uma elite rica, de sobrenome português e cor amulatada, esta sim, aristocratizada por história e tradição, dinheiro e perpetuidade no mando político”. Wanda não se rendia e torcia o nariz para esses superiores de má origem, afinal gente com 'um pé na cozinha', e fazia um nome do Pai com o seu temor a qualquer coisa vagamente africana. No leite de sua família toda, garantia, jamais pousara uma única mosca”. p. 24/25.
É neste ambiente que vive Eunice, uma criatura apagada, solitária, e a padecer de tremenda carência afetiva. O drama se inicia quando um “perfume” exalado de um homem, provoca profundo e complexo processo de sondagem no tempo e na memória da protagonista que ira ligar-se de maneira simultânea, a uma série de peculiaridades da sua vida pessoal e social, onde a perquirição levada a efeito pelo autor-narrador, irá aos poucos revelando aterradoras nuances de desfibramento e amargura.

“Enfiou o rosto nas palmas em concha, aspirou. O resquício estava menos na pele das mãos que na sua memória. Era preciso senti-lo outra vez, misturado àquela pele, próprio do homem, dentro dele, dentro dele, fora dela mesma”. p.30.
A tentativa de reencontrar o homem que a protagonista enceta, faz com que, aos poucos, suas memórias venham à tona por meio de uma cadeia de associações dinâmicas. Ou seja, ao receber este impacto da realidade, descargas associativas vão desenterrando seu passado – o passado impresso na memória torna-se presente, pula da inércia em que vivia para a consciência conflituosa.
O romancista não se detém propriamente na estruturação de um enredo linear, enquanto sucessão de fatos narrados um a um, mas sim, nas marcas que estes imprimem no íntimo da protagonista e no drama que ela vive. Examinando os espaços onde a protagonista vai transitando, as relações entre a vida objetiva e a subjetiva. Precisamente isto nos desperta o interesse. Como os resíduos dos fatos deixam marcas em nossa psicologia?
Escritor experiente, Chico Lopes não deixa empobrecer o tônus dramático, porque move sua câmara para o plano da vida subjetiva da personagem, ainda que se note claramente na narrativa, uma verdadeira osmose entre a criação subconsciente e a crítica social altamente pertinente. Logrou urdir um texto onde, inegavelmente, há um consórcio harmonioso entre memória, observação e a imaginação.
O fluxo incessante das coisas (acontecimentos) prossegue sua inexorável caminhada para direções insuspeitadas. Trata-se de um romance de testemunho, psicológico. Afinado com o conflito interior da protagonista, oferece uma visão profunda e grave do ser, expressa numa técnica tão complexa quanto a realidade viva que lhe serve de ponto de partida: como contraponto; as mudanças de tempo, a percepção do fluxo de consciência, etc.
A técnica de mudança de tempo, por exemplo, conhecida como time-shift, é largamente utilizada, e consiste em cenas ou ocorrências apresentadas sem introdução ou explícita referencia à sua relação cronológica com as precedentes ou subsequentes. A notação da narrativa dura um lapso de tempo, para logo se transformar num pensamento, numa impressão, numa lembrança. Em suma. Deixa de ser o que é, e torna-se um pretexto para que a personagem se introjete e se afaste do mundo circundante. Exemplo marcante dessa técnica acontece no capítulo “Altares e túmulos”. Vale a pena transcrever trecho de habilidade narrativa e rara sutileza.
“Outro cheiro a conduziu, incerta, na manhã em que se dispusera a, saindo do trabalho, ir para a igreja. Um cheiro de incenso, que não tinha certeza de ser realmente de incenso – parecia antes uma lembrança de alguma coisa guardada e serena dentro de si, um nicho onde uma Eunice intocada pelo tempo e pela experiência ainda se mantinha encantada e pairando entre lírios à beira de altares”.
A narrativa segue, fluindo aos poucos, para se escoar em uma ambientação na qual ocorre uma das cenas mais desesperadoras do romance:
“Nesse vácuo abobadado, onde uma tossida faria um eco decididamente ofensivo, houve sossego: desmontou-se esse templo e, súbito, ele voltou a ter o aspecto anterior à restauração e ampliação, e lá, pelos lados da imagem em branco, azul-celeste e ouro de Nossa Senhora se repôs diante de seus olhos o confessionário”.
Finalmente o envolvimento erótico com o padre Fabrício:
“Fosse como fosse, a voz era quente, oportuna, em sua cabeça. Um pouco de pelos do braço surgiu à ponta do punho da batina, quando ele pôs a mão por sobre a perna, que escapava do cortinado roxo. Ela suspirou.
- Parece muito nervosa, filha…
Ela riu para si: ele não tinha idade para pai dela.
E lhe contou alguns deslizes, nada do principal, nada do desejo e da curiosidade incessante por toda a humanidade masculina nas ruas, nada da sujeição à Wanda, do temor ao pai, do desprezo à resignação exagerada da mãe. Estavam sozinhos na igreja toda...” p. 129/133.
Observemos que a narração surge mais como lembrada e não como um expediente do romancista para ligar as cenas e os acontecimentos. Raramente o narrador se intromete na história, e quando o faz, é para uma breve reflexão, dar uma informação de “hoje” ou interpretar uma lembrança. Tudo, ou quase tudo, volve-se em reminiscências para abranger a área da vida mental da personagem (o ‘antes’ e o ‘depois’ dizem mais respeito à ordem de colocação dentro do romance que à ordem temporal dos acontecimentos). Mas é precisamente sob este efeito que a trama ganha vida, e verossimilhança, graças ao processo de associação que tudo embaralha; presente, passado e futuro, numa unidade indissociável. Como é a vida. Os capítulos vão-se aglutinando segundo essa técnica.
Coexistem na trama vários dramas envolvendo as relações amorosas de Eunice. Dramas mais ou menos intensos, todavia em uma visada mais profunda percebe-se um desnível entre eles, resultante de uns serem principais e outros secundários. Os capítulos “Visões de esguelha” e “Altares e túmulos” são marcantes do ponto de vista da formação da sensibilidade afetiva da protagonista. Suas reflexões escapam do estrito plano literário em que se situam para vir ter lugar entre nós, seres vivos. São reflexões semelhantes àquelas que fazemos em nosso “eu profundo” e, no decorrer do amadurecimento interior que vamos ganhando pela vida a fora. E sendo tão humana, a personagem acaba por se transformar em um símbolo, símbolo das relações afetivas/sexuais por momentos elevadas a sua dimensão mais grotesca: a do desenfreamento animalesco dos sentidos, exposto com crueza de detalhes:
“A servidão dela o assanhava. Redobrava a sua energia, não havia limite para as suas variações – mostrasse ela prazer ou dor, ele continuaria, ainda mais insano, faltando se esgoelar no urro do vencedor”. p.104.
O homo sapiens hoje busca sofregamente os amores “furtivos” que a Internet oferece. Ou se isenta do absurdo de vida que criou e vive um vale-tudo que inclui fugas e alheamentos a base de calmantes legais e receitados a torto e a direito.Trechos magistrais:
“...também cansada dos homens incorpóreos no bate-papo da Internet, 'é uma frustração querida, a gente vai, vai, vai com aquelas mensagens, mas aí, para concluir, o sujeito quer ouvir a voz, a gente passa o telefone, fala tudo que é preciso, o filho da puta lá do outro lado pede mais, mais, faz uma ronqueira de porco cevado, descreve a ejaculação todinha, é horrível – ela riu – e, bom, não quero ser pretexto para uma punheta que nem vejo, mas não vou te falar disso, você fica tão pálida que me dá medo”. p. 172.

“Sempre que engolia um dos comprimidos cor-de-rosa, tinha alguns momentos de beatitude, os músculos bem relaxados, a sonolência, a lentidão trazendo uma complacência para apreciar as pessoas, achá-las bonitas, agradáveis e humanas nas ruas, mesmo que não a olhassem, e conseguia esquecer as obrigações com a casa, com Wanda, detendo-se mais no centro da cidade. Que bom, agora, simplesmente ficar olhando para as flores e os pombos da praça, ignorando a sujeira, os tipos atirados nos bancos, ou achando que tudo, mesmo as caras feias, doentias, mesmo os velhos, ofereciam uma espécie de harmonia bastante aceitável,...” p.177.
Eunice se desespera, não consegue encontrar o 'amor' idealizado, cogita alternativas, para finalmente, concretizar uma tímida fuga libertadora (uma viagem para uma cidade próxima), que mais uma vez acaba em frustração, não somente por estar presa a condicionamentos interiores, mas também graças às imposições cruéis da sociedade machista. Chama a atenção um fato: São raras as passagens em que a palavra amor é pronunciada. Vejamos trecho de pungente esperança:

“Eles eram assim: sujeitos à redenção só ao encontrarem um grande e abnegado amor feminino. E era espantoso, ela admitia para si mesma, que ainda acreditasse um pouco nisso. Nenhum malogro podia destruir fé tão bonita, justificava-se, achando que em seu caso a ingenuidade nutria um mito que um dia daria frutos”. p. 181.
O machismo tem grande peso nesta obra, e é abordado em suas piores facetas. Exemplo: a castração que se opera ao pleno desenvolvimento da personalidade feminina ainda na família que a cria, e nas instituições sociais, como a escola que a deveriam orientar:
“Amuava e, quieta em sua carteira, aprendia tudo quanto podia, a ponto de nunca ter tido um boletim senão brilhante, mas tudo aquilo – as classes ruidosas, os professores, os funcionários, a quadra de esportes, os banheiros, parecia uma espécie de provação: estava entregue ao mundo, muito diferente da casa, dos cuidados de Wanda e da mãe, estava entregue a uma estranha forma de presídio ou hospício onde a paz, a felicidade, o bom que fosse, tinham pouquíssimo lugar”… “...provocando seu choro – nunca ostensivo, mas no banheiro, onde sempre se trancava mais para ter a sua privacidade que para outra coisa. Mas, tudo bem, secar-se, não mostrar mais nada, não mais gostar de ninguém”. p.113/114.

Ao cabo da leitura, fica-nos a forte sensação de que a temática do livro ultrapassa o enfoque simplista da postura machista. Ultrapassa porque toca mais fundo na questão das relações humanas, e em assim sendo, o livro dá margem a mais amplos questionamentos. Como, e porque meios, chegamos a esta visão do mero desejo sexual que aflora, se satisfaz e se esquece (os animais o praticam com o fim de perpetuar a espécie, e nós nem disso queremos mais saber, homens e mulheres)? O sexo é decorrência do amor, ou mera necessidade orgânica sem qualquer relação de afetividade mais profunda? Como chegamos a esta completa dissolução da ideia da sexualidade como parte do amor e não fim em si mesma? Porque estamos tão confusos quanto a isso, e nos aventuramos – homens e mulheres, nas mais torpes experiências? Em raros momentos – a personagem nos transmite uma pálida idealização romântica -, Eunice se empenha verdadeiramente em conhecer alguém, namorar, casar, gerar uma prole. Pulamos etapas, queimamos processos de entendimento mútuo, vamos direto ao gozo irrefreável – será que por conta da quebra de todos os padrões de conduta, inclusive sexual que a humanidade levou a efeito? Será por conta desse prematuro envelhecimento imposto pelos padrões da sociedade imediatista de consumo e beleza exterior, que relega pessoas à condição de descartáveis sexualmente, e portanto, a urgência alucinada? Será que o hedonismo que nos move é, afinal, razão e fim do existir? Muito a pensar, muito a refletir sobre essas questões.
Mas eis que, chegamos ao epílogo do livro. O capítulo “Uma camisa” assume significativa importância, pois é o ponto mais fundo no mergulho que demos na compacta realidade ficcional proposta. Ali onde a personagem, ante uma vida de busca e decepção, enfim transcende a si mesma, e podemos desfrutar toda a reflexão contida na obra, enriquecendo nosso mundo interior com o conhecimento mais agudo da realidade humana.
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Penalux 03/11/2017

A personagem mulher
Não é sempre que a literatura escolhe uma personagem feminina, como protagonista, ainda mais quando este escritor é um homem. Chico Lopes, no entanto, positivamente contribui com a desconstrução desta literatura quase toda dominada de caracteres masculinos, mergulhando no íntimo de uma mulher que será desmontado nas páginas sequenciais da obra.
O que Chico traz, de forma rica, é a capacidade de enquanto homem, compreender e conhecer a esfera de incertezas, de traições e solidão que emanam das figuras masculinas, quando este mesmo homem é inflexionado pelos preconceitos referentes ao gênero masculino, que lhe impõe um padrão severo de comportamento, baseado em trapaças e em mentiras. De forma sensível, no entanto, Chico entende a sensibilidade feminina, que se confunde e se impacta pelo contato opositivo desta quase fragilidade da mulher, com a brusquidão dos homens.
“Corpos Furtivos” é a história de Eunice, mulher madura, que se apaixona pelo aroma de um homem, que conhece por acaso. Nesta busca obsessiva por este cheiro diferenciado, o passado da protagonista desenvolve-se durante a história, ao mesmo tempo que Eunice é abatida pela densidade de um mundo masculino, que lhe contamina, no sentido de desdobrar-se para ela lhe desiquilibrando com as vibrações deste universo de tantas contrariedades.
A história que se passa no interior, também reconstrói a interpretação antiga que julgava considerar este local, um espaço cheio de passividades, mas que mudou radicalmente com o desenvolvimento e transformações sociais, desdobrando-se em um interior que é apenas uma extensão da metrópole com todos os seus turbilhões, violência, movimento, tráfego.
Chico Lopes já merecidamente agraciado com vários prêmios literários, entre eles o Jabuti, convida o leitor para este olhar sensível na direção da vida de uma mulher, já adulta, mas que enquanto viva e acompanhada de sua personalidade já formada, ainda carrega dilemas femininos que parecem indissolúveis mesmo diante da passagem do tempo.

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