Jardim de histórias 02/04/2024
"O sentimento de culpa é uma noite escura em pleno dia"
Até que ponto, o desejo de uns pode ser transferido para outros? Aquilo que não consigo realizar em mim, pode ser imputado a terceiros? No início Odran aceitou se tornar padre, mais por imposição de sua mãe, do que por vocação, porém, conforme a maturidade e seus desenvolvimentos emocionais, vem também, seus conflitos e questionamentos sobre suas escolhas, diante de um cenário repleto de possibilidades, permeado de sexualidade, homofobia, pedofilia, culpa e crise existencial, onde, o local mais indicado para buscar o refúgio necessário é em nos mesmos, cercados em nossa consciência.
O autor traz um olhar perturbador da imposição católica inserido em um contexto preconceituoso. Ao contrário das tradições litúrgicas que conhecemos, principalmente quando analisado do nosso ponto de vista contemporâneo e não histórico, temos um entendimento de uma igreja católica e sua influência social cultural, dentro de um estado laico, fazendo com que seus aspectos, sejam mais brandos. Totalmente diferente da influência católica no período colonial e também em países cuja o estado é considerado católico, onde o domínio se torna mais evidente. E é nesse universo que John Boyne, nos introduz essa história tensa, porém escrita sob a ótica inocente, com certo ar de apatia pelo protagonista Odran, que será responsável pela narrativa da história, como também manter o clímax nebuloso que envolve o tema. Nesse cenário, não há brandura, muito pelo contrário, o que existe é um domínio social composto por uma hipocrisia deslavada, quase que caricata, mas ao pesquisar, pude perceber que o Boyne não exagerou, descreveu como um grito preso na garganta, esse domínio clerical recheado de escândalos encobertos, preconconceitos e conceitos, atitudes machistas e homofóbicas, homofobia essa que era sistematicamente utilizada para classificar e desclassificar situações e pessoas, mas também, para criar uma cortina de fumaça espessa o suficiente para esconder escândalos atribuídos a igreja. Outro escândalo, citado no livro, que funciona como fio condutor é o da pedofilia e o incansável trabalho de bastidor que a cúpula da igreja realiza para desviar os holofotes. O autor, sabiamente, dará voz às vítimas, mostrando o drama dos jovens e familiares que sofrem às consequências da importunação e os bons padres que sofrem e se veem em um contexto generalizado e tem uma vida manchada pelo seus colegas.
O livro é um drama muito bem construído, embora não linear, mas muito bem conectado, que abordará lembranças da infância ao amadurecimento de Odran, que criado em um lar conservador aos moldes católicos irlandeses, devido à sua criação tolhida, ele foi por decisão de sua mãe, devido ela acreditar que ele tinha vocação para ser padre, sendo assim, conduzido aos ensinamentos religiosos em um seminário. Agora, se engana quem pense que estamos diante de uma obra repleta de estoicismo ou resiliência, John Boyne, aproveitará esse contexto para trazer os conflitos ideológicos e o efeito de ter o dedo direto na ferida, ficando muito claro, que a história, não é somente um drama de uma pessoa que é fruto de uma tragédia familiar, que fora moldado na tentativa de reestruturação, embora esse seja o enredo. O drama é sobre os muros que criamos ou permitimos, que nos envolve e nos garante o conforto necessário para se esconder em nós mesmos, neste caso, a solidão, não nos torna a nossa melhor companhia, mas nosso refúgio.
Um livro de fácil conexão, leitura prazerosa, rápida e que dá vontade de avançar a cada capítulo, os personagens principais são de certa forma marcantes, tem muito DNA de John Boyne, para quem acompanha o autor conhecendo suas obras maravilhosas, sabe muito bem no que me refiro.