Thalyta Vidal 23/06/2023
"Outros Cantos", de Maria Valéria Rezende
"Pra ler o quê, aqui? Só se for marca de ferro em lombo de boi... Carece de ler não, toda velha sabe de cabeça"
Uma narrativa "on The road" que evidencia, mais uma vez, o caráter nômade das obras valerianas. Em "Outros Cantos", a nossa viagem será num ônibus, junto à protagonista, rememorando suas vivências na cidade de Olhos D'água. Como de costume, Rezende traz, para essa obra, as vivências interioranas, mostrando os ensinamentos aprendidos por alguém que ali foi para ensinar. Carregado ora de humor, ora de ironias, ora de denúncias, a romancista - através do relato de uma professora aposentada que decide alfabetizar jovens e adultos numa pequena cidade- nos revela a vivência de outros cantos, que, de tão pequenos têm como marca o esquecimento. Na trama, o (des)interesse governamental ao assegurar políticas de alfabetização, bem como o conhecimento e a persistência do povo vão nos sendo apresentados por meio da "contação de histórias" tão comuns à autora. Saímos de "Outros cantos", como se estivéssemos permanecido sentados, com uma caneca de café, em um tamborete na porta de uma casa, ao ouvir a voz do tempo e da experiência propagar suas histórias. É assim que me sinto quando leio Maria Valéria Rezende, numa roda de conversa, cujas histórias não são apenas narradas aleatoriamente, mas que carregam uma série de problemas sociais e, aqui, o homem da pequena cidade é reduzido ao voto, bem como as crianças não merecem uma escola, pois ainda não podem exercer sua cidadania por meio do voto, prática essa naturalizada: sabem quem é o candidato do prefeito? Claro que sim, filho e neto de prefeitos. Vocês acham que está certo? Certíssimo, pois, se ele não ajudar nem a família dele, a quem mais é que vai ajudar? (p.143). Dessa forma, os limites entre ficção e realidade são rompidos, constituindo uma teia no romance que, mesmo emaranhada, é percebida pelo leitor. Educação libertária, descaso governamental, sabedoria popular e resistência são temas que percorrem essa obra. Ah, um adendo! Preciso mencionar como alguns elementos vão saindo de um romance para outro, há sempre uma pista de outras obras de Rezende em seus escritos, aqui, o canto ouvido quando personagens caminham em meio à natureza, elemento presente em "Ouro dentro da cabeça" aparece novamente. Mais uma vez, leiam!