Nu e As 1001 Nuccias 05/02/2016Resenha do Blog As 1001 NucciasSe eu tivesse de resumir o livro em uma palavra, acho que seria: UAU!!!
Restos de Nós narra a história de vida de duas mulheres: Mariana e Maria Clara, separadas por quase dois séculos, mas conectadas de muitas formas: casamentos opressivos, família ausente, amores platônicos, morte, escravidão e a rua onde moravam.
Sobre a história: tudo se inicia quando Victória, uma funcionária do setor de Tombamento Patrimonial da Prefeitura, e moradora do bairro da Gávea/RJ, finalmente entra no grande casarão da Rua Desembargador Paulo Miller, sobre o qual ouviu muitas histórias contadas por sua avó. O casarão, abandonado como se parado no tempo, escondia mais do que poeira e móveis antigos. Ao fazer questão de chegar ao local antes da chefe do departamento, Victória faz uma grande descoberta: encontra o diário da antiga moradora, Maria Clara, bem escondido em um vão perto da mesa de cabeceira. Victória, após esconder seu achado e muito matutar se deveria ou não trapacear suas lembranças das narrativas da avó, decide finalmente desvendar a história de vida de Maria Clara, após seu casamento em 1855.
Enquanto Victória lê o diário de Maria Clara, Rodrigo encontra o laptop de sua esposa ligado. Em um impulso, rompe o passear das imagens da tela de espera e encontra anotações diárias feitas pela esposa. Inicia, então, a leitura sobre uma parte da vida de Mariana a qual nunca soube, nunca se conectou.
Feita em terceira pessoa no prólogo, passa a ser narrada em primeira pessoa quando chegamos aos diários. É uma narrativa bem fluida, cheia de metáforas belíssimas, incríveis descrições e conectada de uma forma profunda, tanto que uma informação ao final do livro já tinha sido delineada no prólogo, mas só percebemos quando chegamos a ela. O título do livro é explicado ao longo do texto de um jeito tão peculiar e despretensioso que pode passar despercebido a um leitor que não tenha mergulhado na narrativa.
Além de todas as metáforas, as narrativas de diário são carregadas de sarcasmo, tristeza, aflição e, em alguns casos, sonhos e exageros. Nada fora do contexto, fique claro. Faz parte da personalidade de quem narra. O texto cita algumas grandes obras da literatura, como Madame Bovary e As Mil e Uma Noites, todas bem encaixadas. Aliás, o contexto no qual foi inserido o livro sobre Sherazade foi completamente diferente do que eu esperava, e, mesmo assim, perfeito.
Os personagens são bem estruturados, dinâmicos, cheios de vida e de tristeza. Victória, uma moça asmática, presa a histórias contadas ela avó, teme perder seu mundo de fantasia ao ler as verdades do diário. Maria Clara, uma jovem que sempre foi renegada pelo pai, apenas pelo fato de sua mãe ter falecido durante o seu parto, se vê presa a um casamento de conveniência com um marido que não a toca, não a procura, mal conversa com ela, e passa dias, meses, junto do primo da moça. Ao se mudar de Bananal, no interior de São Paulo, para o grande casarão na Gávea, só encontra liberdade em seus passeios matinais. Mariana é uma nutricionista de renome, presa a um casamento sem amor, sem paixão, sem conversa. Caminha todos os dias pela manhã na rua, onde (re)conhece alguns moradores e suas histórias, passa todos os dias em frente ao grande casarão, e luta para emagrecer a fim de se enquadrar no padrão de beleza da sociedade atual, em uma vã esperança de se fazer notar novamente pelo marido, um grande cirurgião.
E a parte técnica? Começando pela capa: é uma das capas mais simples e bem feita que já vi. Em um tom bege, ao estilo sépia, traz uma imagem (feita pelas mãos de uma artista plástica amiga da autora, especialmente para a capa) de parte da Baía de Guanabara, tendo em destaque o morro Dois Irmãos com a Pedra da Gávea ao fundo, mas da época de antes da construção de todos os prédios. Essa imagem é ligeiramente mais escura que o restante da capa. Além disso, é margeada nas partes superior e inferior por cordas (parecidas com as de navegação, bem grossas) em tons de verde floresta. A corda superior faz parte da composição do título do livro, bem destacado, no mesmo tom de verde. O nome da autora e o subtítulo do livro estão em uma cor mais escura, avermelhada.
O livro conta com duas orelhas, tendo a biografia da autora na primeira e a segunda vazia. Nesse caso, acho que a editora poderia ter aproveitado melhor o espaço e colocado uma parte do texto.
A diagramação interna é esplêndida. Temos dois mapas da Rua Paulo Miller, um de 1855 e outro de 2005, feitos na mesma arte da capa. Em papel pólen, amarelado, o texto está com fonte em tamanho agradável, margens justificadas. A narrativa é quase toda dividida em datas e locais, como se fosse mesmo a leitura dos diários citados. A narrativa de 1855 foi impressa em itálico, mas a fonte é boa e não atrapalha a leitura. Todas as datas são em negrito, como inícios de capítulos. Nenhum erro de português, nem ortográfico, nem pontuação. Chiado Editora arrasando!
O que eu achei do livro? Não passei pelas mesmas situações das protagonistas, mas alguns momentos foram bem semelhantes ao que vivi. Eu tive algumas das mesmas reações (em especial, na parte que fala das amigas que tiveram filhos e se auto-promovem a um patamar "melhor" que o seu). Também já me vi presa a um relacionamento triste, em que eu amava alguém mais do que a mim mesma, tentando desesperadamente me modificar para agradar. Tudo muda na vida, para o bem ou o mal. Mas só muda se você se dispuser a isso.
Com um final surpreendente e inesperado, que me deixou um tanto estarrecida e sem reação, é um livro que merece mais do que ser lido: merece ser interpretado, analisado e usado por muitas mulheres como base para mudanças em sua vida. É uma obra que foi premiada com uma bolsa do Ministério da Cultura, o que permitiu sua publicação.
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