Procyon 20/10/2022
Um Médico Rural ? Resenha
Franz Kafka, ardiloso escritor de romances e contos, pode facilmente ser rotulado de ?Profeta do Espanto?, uma vez que suas narrativas claustrofóbicas adentram nas entranhas do poder e do autoritarismo, dentro de uma atmosfera de coerção, de impossibilidade de fuga das estruturas de poder. Esse ambiente cinzento e opaco do qual o sujeito não pode escapulir, revela a impassibilidade burocrática, a impotência cidadã diante de um mundo alucinado, questões de subserviência involuntária, a alienação e a brutalidade das instâncias do poder.
Nascido na Áustria-Hungria, em 1883, veio de uma família judia de Praga, capital da Boêmia (atual República Checa), uma cidade dividida entre nacionalistas tchecos e falantes alemães. Kafka falava as duas línguas, mas se identificava mais como germânico. Escritor modernista, Kafka possui algumas marcas expressionistas ? a notar pelo olhar do grotesco, as situações insólitas e a deformação da realidade ? na medida em que realiza suas construções labirínticas (por mais que Kafka esteja muito mais atrelado ao realismo do que a um pretenso expressionismo, uma vez que, por exemplo, suas personagens não exteriorizam suas angústias, como num ?O Grito?, de Munch). Em seus textos é visível sua afeição às obras de Dostoievsky e Flaubert, e aos pensamentos de Kleist e Goethe; a relação conflituosa com o pai, o antissemitismo ? que já se propalava na Europa, e que, futuramente e sem Kafka o saber, pois já estaria morto, viria a acossar sua irmã mais nova ?, além de uma vida profissional ? e emocional ? exaustiva. Tematicamente, prevalece em seus textos, portanto, a burocracia, a violência da alteridade, a nulidade do sujeito, a opressão e a culpa ? dentro da lógica judaico-cristã.
Essa coletânea, ?Um Médico Rural? é uma das poucas que Kafka publicou em vida. Essas catorze narrativas variam bastante em extensão, mas convergem num vínculo mais imediato pela coexistência da dimensão enigmática com uma escrita cristalina e a ironia com uma síntese lírica imprescindível. A tradução do crítico e professor de literatura Modesto Carone é formidável ao tentar emular o estilo protocolar da linguagem kafkiana, traduzindo-se num texto límpido, instigante, mas também cansativo ? sentimento de impotência do leitor semelhante à impotência das personagens kafkianas.
Nesse sentido, desde um primeiro momento, fica um sentimento de incômodo ao leitor, uma sensação de que pouco se entendera/assimilara do sentido geral do texto. Diante de tais temáticas e de tais abordagens estético-formais, fica uma reação de espanto, produto de imagens singulares que o autor nos proporciona. Seja animais que se transformam em homens (?O novo advogado?, ?Um relatório para uma academia?), do peculiar estilo de inversão, além da forte presente de cavalos, escadas, visitas, da figura do pai como figura de autoridade, de uma narração sibilina, da inserção do caso insólito, a escrita então adquire um lirismo por conta dessa linguagem límpida que profana um mundo burocrático e metódico, do onirismo do absurdo, do incompreensível e da projeção do inconsciente.
Nota-se uma fragmentação intencional de um mundo instável, em que essa fragmentação do real se transmite na composição estética da obra ? parágrafos/capítulos não parecem convergir para uma unidade formal, de fato, causando essa síncope de estranheza. No conto homônimo, Kafka capta esse sentimento de impotência ao personagem do médico em relação ao absurdo do mundo, através de sua hesitação e da imprevisibilidade dos espaços, de modo que preenche a narrativa do elemento fantástico para criar um mundo onírico de mistério. Outros contos como ?O novo advogado?, ?Chacais e árabes? e ?Uma mensagem imperial? também adquirem destaque, onde acredito que em releituras estes textos crescerão ainda mais no meu imaginário. Em suma, Kafka mudou nossa concepção de linguagem literária ao criar uma perspectiva efetivamente nova para encarar o mundo moderno.