jota 02/12/2020DIFÍCIL (narrativa mesclada, fragmentada, não linear, que flerta com o Ulysses de Joyce) Memórias Sentimentais de João Miramar: duas estrelas e meia
Serafim Ponte Grande: cinco estrelas
Macunaíma: cinco estrelas
Ulysses: quatro estrelas (5 + 3 ÷ 2)
Em Miramar na Mira, o crítico e poeta Haroldo de Campos tenta explicar para o leitor a obra-prima de Oswald de Andrade (1890-1954), Memórias Sentimentais de João Miramar. Antes de mais nada, o ensaio de Campos se reporta a 1922, ano marcado pelo surgimento do movimento modernista no Brasil e, coincidentemente, da publicação do livro que mudou os rumos da ficção moderna: Ulysses, de James Joyce. Memórias Sentimentais saiu dois anos depois (1924) e, em 1928, temos Macunaíma, de Mário de Andrade, escrito desde 1926. Que, juntamente com o livro de Oswald (há certo diálogo entre Memórias e Macunaíma, como o próprio Mário reconheceu em carta a Manuel Bandeira), vai marcar um momento especial da literatura brasileira, a renovação de nossas letras. Tudo isso é história: a Semana de Arte Moderna de 22 e seus desdobramentos logo comemoram o centenário.
Campos prossegue fazendo comparações entre Miramar e Macunaíma para mostrar o vínculo entre as duas obras, mas o que parece mais interessante no ensaio são mesmo as semelhanças entre o livro de Oswald e o de Joyce. Antes, Campos tecera alguns comentários sobre Thomas Mann que, como Joyce é por ele caracterizado como romancista da crise da burguesia. Especialmente pelo uso que Mann faz da paródia, o que o conectaria a James Joyce. A paródia está presente tanto na odisséia de João Miramar (por São Paulo, Santos e Paris) quanto na de Macunaíma (de Uraricoera para São Paulo em busca do muiraquitã), do mesmo modo que Joyce retrata a odisséia de Leopold Bloom por Dublin num único dia de 1904, 16 de junho. Lá o foco era na burguesia irlandesa, aqui a paulistana é que é especialmente parodiada. Recurso literário que já se encontrava presente em Dom Quixote (1605), de Cervantes, conforme lembra Campos.
Macunaíma é uma obra de fácil assimilação pelo leitor; isso não ocorre em Miramar pelo excesso de fragmentação e outras experimentações; as memórias são contadas em estilo telegráfico em 163 textos mesclados e dispostos sem qualquer sequência cronológica, o que, somado ao resto, convenhamos, dificulta nosso entendimento (o meu, pelo menos). Campos sugere que deveria haver obras que estudassem e explicassem melhor o livro para o público, como ocorre com as inúmeras que foram escritas sobre Ulisses. Que, no entanto, é muito mais volumoso e de estrutura muito mais complexa do que Miramar, um verdadeiro supermercado das letras, tem de tudo. Na falta, ele cita o que o crítico Antonio Cândido escreveu sobre Memórias Sentimentais: “Um dos maiores livros da nossa literatura, é uma tentativa seríssima de estilo e narrativa, ao mesmo tempo que um primeiro esboço de sátira social. A burguesia endinheirada roda pelo mundo o seu vazio, as suas convenções, numa esterilidade apavorante. Miramar é um humorista pince sans rire, que procura kodakar a vida imperturbavelmente, por meio duma linguagem sintética e fulgurante, cheia de soldas arrojadas, de uma concisão lapidar.”
Antonio Cândido, como muitos intelectuais brasileiros, parecia mais preocupado em escrever para seus iguais, outros intelectuais, em vez de se fazer entender também por leitores comuns. Traduzindo: “pince sans rire” significa, no contexto, sarcástico, e “kodakar”, retratar a vida com uma câmera Kodak. Também não adianta muito tentar resumir aqui a opinião e as explicações todas de Campos sobre Memórias Sentimentais. Elas tornaram o livro um pouco menos obscuro para mim (muito pouco, na verdade) e talvez possam também fazer isso por outros leitores. Reconheço que desde as páginas iniciais imaginei que o livro de Oswald não me agradaria plenamente, ao contrário do que ocorreu com Serafim Ponte Grande (publicado em 1933, mas escrito entre 1925 e 1929), que apreciei bastante por ser muito mais palatável.
Quis ler Memórias Sentimentais do mesmo modo que ocorreu com Ulisses, para saciar minha curiosidade sobre esses livros tão falados e nem tanto assim lidos. De uma lista publicada pela Folha de São Paulo em 2006, que trazia os cem melhores romances do século XX escolhidos por especialistas brasileiros, acadêmicos na maioria, já li sessenta e dois e nela o livro de Joyce ocupa a primeira posição. Não sei se irei ler os demais faltantes (trinta e oito), mesmo porque sobre alguns tenho a certeza de que não vou apreciá-los e outros estão fora de catálogo há tempos, são difíceis de encontrar ou então o preço deles nos sebos é abusivo.
A FSP, na mesma matéria enumerava, pelos mesmos especialistas consultados para a lista anterior, os trinta livros brasileiros mais importantes do século XX. Macunaíma ocupava o quarto lugar, Memórias Sentimentais de João Miramar o décimo e Serafim Ponte Grande o décimo terceiro. No primeiro lugar, Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, que li em fevereiro de 2020. Agora, lido Miramar, faltam apenas oito volumes para completar a lista dessas obras. Se conseguir, um dia digo se valeu mesmo a pena ler tudo isso. Ah, sim, a avaliação (duas estrelas e meia) é de minha relação com a obra (gostei muito pouco da leitura), não sobre a obra em si.
Lido entre 27 e 30/11/2020.