spoiler visualizarAmandinha_13 08/01/2023
Silêncio
Dostoiéveski oferece uma narrativa fantástica ao apresentar a ideia inverossímil de que um homem, no leito de morte de sua esposa, é capaz de narrar com precisão as experiências de seu casamento. Na narrativa estritamente unilateral, o narrador apresenta ao leitor um casamento baseado em disparidade desde o momento em que os personagens se conhecem. Uma interação baseada em alguém que tem o controle da situação e um outro alguém que nada mais pode fazer além de se domesticar diante da situação.
O narrador de ?a dócil?, na condição de personagem, não pode acessar os pensamentos de seu cônjuge e, portanto, passa a narrativa sofrendo com suas próprias conjecturas do que a amada está pensando. O fluxo de pensamento nesse caso é privilegiado sobre o temporal e temos amplo acesso aos rodeios mentais do narrador. Essa condição humaniza consideravelmente o personagem, pois seus defeitos passam a parecer muito menos caricatos do que em comparação com outros personagens de outros autores lidos nesta disciplina.
O narrador passa a maior parte da narrativa se focando inteiramente na sua companheira e suas reações, e quanto mais sobre ela ele fala, mais passamos a conhecê-lo. Lidando com uma situação desagradável do passado, sobre a qual ele não está disposto a compartilhar, fechado em sua bolha, ele acredita estar fazendo o certo ao tratar com silêncio alguém que declara amar. Um erro, é claro, pois a falta de comunicação entre os dois é o que leva ao infeliz desfecho de seu casamento.
Parte de mim ficou com a impressão de que em pelo menos ¾ da narrativa ele não enxerga ela como outro ser humano. Impressão que é bastante fomentada pela forma como ele a trata, ignorando opiniões, tirando conclusões, criando regras... é visto que ela é mais uma de suas propriedades, mais um objeto na casa de penhores. Amansada, domesticada, calada em um canto.
Quanto mais o conhecemos e o enxergamos como o humano, mais insignificante ela se torna. Até que ele, em um ímpeto, decide declarar seus sentimentos, e finalmente considerá-la como uma outra parte igual naquele relacionamento. Ou não. Para mim, mais do que fazer as pazes e reatar o casamento, o narrador soa muito mais disposto a partir diretamente da posição de dominante para submisso, baseada na forma como ele faz sua declaração: ?não me responda nada, me ignora completamente, e me deixa apenas te olhar do meu canto, faz de mim o teu objeto, o teu cachorrinho...?
Mesmo assim ele não se dispõe a ouvi-la, ou, pelo menos, não inteiramente, e segue tomando grandes decisões sozinho. A ?não tão dócil? esposa, entretanto, decide seguir por outro caminho. A verdade é que no fim, o que ela realmente pensava de tudo aquilo vai continuar sendo um mistério para ele, e para mim também, que passarei alguns dias atormentada pelas possibilidades. Dostoiéveski de fato, entregou uma narrativa fantástica.