Alane.Sthefany 23/03/2022
Duas Narrativas Fantásticas - Fiódor Dostoiévski
A Dócil
É uma novela escrita por Fiódor Dostoiévski, em 1876, que conta a história do envolvimento amoroso do dono de uma casa de penhores, um homem mais velho (considerado um ser mal), com uma adolescente de 16 anos (que é apresentada por ele - narrador personagem - como uma mulher dócil), com quem se casa, e que no final acaba culminando em uma tragédia.
Apesar de apresentar diálogos entre os protagonistas, a narrativa é basicamente em primeira pessoa, descrevendo os pensamentos e sentimos conturbados do protagonista sobre seu relacionamento com essa jovem.
?
O Sonho de Um Homem Ridículo
É um conto do escritor russo Fiódor Dostoiévski de 1877. É dividido em cinco partes, também é contado por um narrador-protagonista, que teve uma revelação através de um sonho utópico. Ele relata suas experiências a partir do momento em que conclui que não há mais nada para viver, que ele é indiferente a tudo que acontece, e que possa vir acontecer, e também a todos. Ele decide portanto, cometer suicídio, e se tornar um nada. No entanto, um encontro inesperado com uma criança o faz mudar de ideia.
[...]
Foi meu primeiro contato com Fiódor Dostoiévski, e eu amei. No primeiro (A Dócil), eu achei o início um pouco arrastado, não estava entendendo muito, devido os personagens não serem apresentados por nomes (são omitidos dentro da história), no entanto, através de pronomes pessoais a todo momento (como: ela, eu ...), mas logo peguei o ritmo da leitura e me habituei. Muito bem escrito. Entretanto, o que me prendeu foi o segundo.
Eu amei o segundo livro (O Sonho de Um Homem Ridículo), tanto, que eu já estou terminando de ler em outra edição (da Antofágica) do mesmo.
Fiódor Dostoiévski tem uma mente brilhante, escritor sensacional, com certeza lerei mais obras dele ???
Trechos Preferidos ???
1. A Dócil - Fiódor Dostoiévski
[...] eu sou uma parte daquela parte do todo que quer fazer o mal, mas cria o bem...?
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Nós somos malditos, a vida dos homens é maldita em geral! (A minha, em particular!)
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A docilidade, porém, atrapalhava. Quando uma criatura dessas se revolta, ainda que passe dos limites, é sempre evidente que ela só está violentando a si mesma, instigando-se a si mesma, e que ela é a primeira a não conseguir lidar com a sua pureza e a sua vergonha. É por isso que essas criaturas às vezes excedem a tal ponto a medida que você não acredita no seu próprio senso de observação. Já uma alma habituada à perversão, ao contrário, sempre vai abrandar, vai fazer sujeira pior, mas mantendo as aparências da ordem e do decoro, cuja pretensão é levar vantagem sobre os senhores.
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Ao suportar o revólver, eu tinha me vingado de todo o meu passado sombrio. E, ainda que ninguém tenha ficado sabendo daquilo, ela porém ficou sabendo, e isso era tudo para mim, porque ela mesma era tudo para mim, toda a esperança do meu futuro que eu sonhava nos meus sonhos! Ela era a única pessoa que eu estava preparando para mim, já nem precisava de outra?e eis que ela ficou sabendo de tudo; ela ficou sabendo pelo menos que tinha se precipitado injustamente em se unir aos meus inimigos.
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O pêndulo bate insensível, repugnante.
Duas horas da madrugada. As suas botinhas estão junto da cama, como que esperando por ela... Não, é sério, quando amanhã a levarem embora, o que é que vai ser de mim?
[...]
2. O Sonho de Um Homem Ridículo
(Quase o livro inteiro)
Senti de repente que para mim dava no mesmo que existisse um mundo
ou que nada houvesse em lugar nenhum. Passei a perceber e a sentir com todo o
meu ser que diante de mim não havia nada. No começo me parecia sempre que,
em compensação, tinha havido muita coisa antes, mas depois intuí que antes
também não tinha havido nada, apenas parecia haver, não sei por quê. Pouco a
pouco me convenci de que também não vai haver nada jamais. Então de repente
parei de me zangar com as pessoas e passei a quase nem notá-las.
[...]
Naquele dia eu quase não almoçara, e desde o começo da
noite estivera na casa de um engenheiro, que recebia mais dois amigos. Eu não
abri a boca o tempo todo, e pelo jeito eles se aborreceram comigo. Conversavam
sobre algo polêmico, e de repente até se inflamaram. Mas para eles tudo era
indiferente, eu via isso, e se acaloravam à toa. De repente desabafei-lhes isso mesmo: ?Ora, senhores, para vós tanto faz?. Não levaram a mal, apenas
começaram a rir de mim. É que falei sem nenhuma censura, e só porque para
mim tudo era indiferente. Viram mesmo que para mim tudo era iidiferente e se
alegraram muito.
.
Me irritei em consequência da conclusão de que, se eu já tinha decidido
que nessa mesma noite me mataria, então, por isso, tudo no mundo, agora mais
do que nunca, deveria me ser indiferente. Por que é que eu fui sentir de repente
que nem tudo me era indiferente, e que eu tinha pena da menina?
(...)
Parecia-me evidente que, se eu sou um homem e ainda não um nada, e enquanto
não me transformei num nada, então estou vivo, e consequentemente posso
sofrer, me zangar ou sentir vergonha pelos meus atos. Que seja. Mas se eu vou
me matar, por exemplo, daqui a duas horas, então o que é que me importa a
menina e o que é que tenho a ver com a vergonha e com o resto do mundo? Eu
me transformo em nada, num nada absoluto. E será que a consciência de que
nesse instante eu vou deixar de existir completamente, e que portanto nada mais
vai existir também, não poderia ter a mínima influência nem no sentimento de
pena pela menina, nem no sentimento de vergonha depois da baixeza cometida?
(...)
Parecia-me evidente que a vida e o mundo agora
como que dependiam de mim. Podia-se até dizer que o mundo agora como que
tinha sido feito só para mim: dou-me um tiro e não há mais mundo, pelo menos
para mim. Sem falar ainda de que, talvez, não vá haver realmente nada mais para
ninguém depois de mim, e todo o mundo, assim que se extinguir a minha
consciência, vai se extinguir no mesmo instante, como um fantasma, como um atributo apenas da minha consciência, e, porque vão sumir, talvez, todo esse
mundo e toda essa gente ? só eu é que existo.
(...)
Ocorreu-me de repente a estranha consideração de que, se eu vivesse antes na lua, ou em Marte, e lá cometesse o ato mais canalha e mais desonesto que se possa imaginar, e lá fosse achincalhado
e desonrado como só se pode sentir e imaginar às vezes dormindo, num
pesadelo, e se, vindo parar depois na terra, eu continuasse a ter consciência do
que cometi no outro planeta e, além disso, soubesse que nunca mais, de jeito
nenhum, voltaria para lá, então, olhando a lua da terra?tudo me seria
indiferente ou não? Sentiria vergonha por aquele ato ou não?
(...)
Às vezes vejo o meu irmão em sonho: ele toma parte nos
meus negócios, estamos bastante compenetrados, e no entanto, ao longo de todo
o sonho, sei e lembro muito bem que o meu irmão está morto e enterrado. Como
é que não me espanto com o fato de que, embora esteja morto, mesmo assim ele
está aqui ao meu lado e se atarefa junto comigo? Por que o meu juízo admite
tudo isso?
(...)
Eles agora caçoam de mim dizendo que isso,
afinal, foi só um sonho. Mas por acaso não dá no mesmo, seja isso um sonho ou
não, já que esse sonho me anunciou a Verdade? Pois, se você uma vez conhece a
verdade e a enxerga, então sabe que ela é a verdade e que não há outra e nem
pode haver, esteja você dormindo ou vivendo. Ora, que seja um sonho, que seja,
mas essa vida que vocês tanto exaltam, eu queria extingui-la com o suicídio, e o
meu sonho, o meu sonho?ah, ele me anunciou uma vida nova, grandiosa,
regenerada e forte!
(...)
Nos sonhos, vocês às vezes despencam das alturas, ou alguém os corta, ou
lhes bate, mas vocês nunca sentem dor, a não ser que vocês mesmos de algum
modo se machuquem de verdade na cama, aí sim vão sentir dor e quase sempre
acordar por causa dela.
(...)
Estou
morto, completamente morto, sei disso e não duvido, não enxergo e não me
movo, e no entanto sinto e raciocino. Mas logo me conformo com isso e, como
de hábito nos sonhos, aceito a realidade sem discussão.
(...)
Eu jazia e, estranho -, nada esperava, aceitando sem discussão que um morto
nada tem a esperar.
(...)
Esperava o não-ser absoluto, e por isso
dei um tiro no coração. E eis que estou nos braços de uma criatura, não humana,
é claro, mas que é, existe: ?Ah, então há também uma vida além-túmulo!?
.
Sabia que há nos espaços celestes certas estrelas cujos raios só alcançam a terra
depois de milhares e milhões de anos.
.
Um
sentimento doce, invocatório, começou em êxtase a ressoar na minha alma: a
força motriz do universo, desse mesmo universo que me deu à luz, pulsou no
meu coração e o ressuscitou, e eu pude sentir a vida, a vida de antes, pela
primeira vez desde a minha sepultura.
(...)
Serão possíveis tais repetições no universo, será possível que seja assim a
lei da natureza?... E se lá está a terra, será possível que ela seja igual à nossa...
exatamente igual, desgraçada, pobre, mas preciosa e para sempre amada, que
gerou, até nos seus filhos mais ingratos, o mesmo torturante amor por si, como a
nossa?
(...) de repente
o sentimento estranho de uma espécie de ciúme grande, sagrado, inflamou-se no
meu coração: ?Como é possível semelhante repetição, e para quê? Eu amo, eu só
posso amar aquela terra que eu deixei, onde ficaram os respingos do meu
sangue, quando eu, ingrato, com um tiro no meu coração, extingui a minha vida.
Mas jamais, jamais deixei de amar aquela terra, e mesmo naquela noite, ao me
separar dela, talvez a amasse com mais tormento do que nunca. Existe tormento
nessa nova terra? Na nossa terra não podemos amar de verdade senão com o
tormento e só pelo tormento! De outro modo não sabemos amar e não
conhecemos amor diferente. Eu quero o tormento para poder amar. Eu tenho
desejo, eu tenho sede, neste exato instante, de beijar, banhado em lágrimas,
somente aquela terra que deixei, e não quero, não admito a vida em nenhuma
outra!...?.
(...)
Ah, tudo era
exatamente como na nossa terra, mas parecia que por toda a parte rebrilhava uma
espécie de festa e um triunfo grandioso, santo, enfim alcançado.
(...)
E, finalmente, eu vi e conheci os habitantes dessa terra
feliz. Eles mesmos se aproximaram de mim, me rodearam, me beijaram. Filhos
do sol, filhos do seu próprio sol?ah, como eles eram belos! Eu nunca tinha visto
na nossa terra tanta beleza no homem. Só nas nossas crianças, nos seus mais
tenros anos de vida, é que talvez se pudesse achar um reflexo, embora distante e
pálido, de tal beleza. Os olhos dessa gente feliz reluziam com um brilho límpido.
Os seus rostos irradiavam uma razão e uma certa consciência que já atingiu a
plena serenidade, mas esses rostos eram alegres; nas palavras e nas vozes dessa
gente soava uma alegria de criança. Ah, imediatamente, no primeiro olhar que lancei aos seus rostos, entendi tudo, tudo! Essa era a terra não profanada pelo
pecado original, nela vivia uma gente sem pecado, vivia no mesmo paraíso em
que viveram, como rezam as lendas de toda a humanidade, os nossos
antepassados pecadores, apenas com a diferença de que aqui a terra inteira era
em cada canto um único e mesmo paraíso. Essas pessoas, rindo alegremente, se
achegavam a mim e me afagavam; levaram-me consigo, e cada uma delas queria
me apaziguar. Ah, não me fizeram nenhuma pergunta, mas era como se já
soubessem de tudo, assim me pareceu, e queriam expulsar o mais depressa
possível o sofrimento do meu rosto.
Ora, e daí que foi só um sonho?
O fato de que eles, sabendo tanto, não
possuíssem a nossa ciência. Mas logo entendi que a sua sabedoria se completava
e se nutria de percepções diferentes das que temos na nossa terra, e que os seus
anseios eram também completamente diferentes. Eles não desejavam nada e
eram serenos, não ansiavam pelo conhecimento da vida como nós ansiamos por
tomar consciência dela, porque a sua vida era plena. Mas a sua sabedoria era
mais profunda e mais elevada que a da nossa ciência; uma vez que a nossa
ciência busca explicar o que é a vida, ela mesma anseia por tomar consciência da
vida para ensinar os outros a viver; ao passo que eles, mesmo sem ciência,
sabiam como viver.
Os animais, que conviviam em paz
com eles, não os atacavam e os amavam, tomados que estavam pelo seu amor.
Às vezes me perguntava, espantado: como podiam
eles, durante todo o tempo, não ferir alguém como eu e nunca despertar em
alguém como eu sentimentos de ciúme e inveja?
Alegravam-se quando lhes vinham filhos, novos participantes da
sua beatitude. Entre eles não havia brigas e não havia ciúme, e nem sequer
entendiam o que significava isso. Os seus filhos eram filhos de todos, porque
todos formavam uma só família. Quase não tinham doenças, se bem que
houvesse a morte; mas os seus velhos morriam serenamente, como que
adormecendo, cercados de pessoas que lhes diziam adeus, abençoando-as,
sorrindo-lhes, enquanto eles próprios recebiam delas sorrisos luminosos de boa
viagem. Nunca vi dor nem lágrimas nessas ocasiões, havia apenas um amor
multiplicado como que até o êxtase, mas um êxtase calmo, pleno, contemplativo.
Podia-se pensar que eles continuavam em contato com os seus mortos mesmo
depois da sua morte, e que a morte não rompia a ligação terrena entre eles.
Sim, sim, o resultado foi que eu perverti todos eles! Como é que isso pôde
acontecer?não sei, mas lembro claramente. O sonho atravessou um milênio
voando e deixou em mim apenas a sensação do todo. Só sei que a causa do
pecado original fui eu. Como uma triquina nojenta, como um átomo de peste
infestando um Estado inteiro, assim também eu infestei com a minha presença
essa terra que antes de mim era feliz e não conhecia o pecado. Eles aprenderam a
mentir e tomaram amor pela mentira e conheceram a beleza da mentira. Ah, isso
talvez tenha começado inocentemente, por brincadeira, por coquetismo, por um
jogo de amor, na verdade, talvez, por um átomo, mas esse átomo de mentira
penetrou no seu coração e lhes agradou. Depois rapidamente nasceu a volúpia, a
volúpia gerou o ciúme, o ciúme?a crueldade... Ah, não sei, não me lembro, mas
depressa, bem depressa respingou o primeiro sangue: eles se espantaram e se
horrorizaram, e começaram a se dispersar, a se dividir. Surgiram alianças, mas
dessa vez umas contra as outras. Começaram as acusações, as censuras.
Conheceram a vergonha, e a vergonha erigiram em virtude. Nasceu a noção de
honra, e cada aliança levantou a sua própria bandeira. Passaram a molestar os
animais, e os animais fugiram deles para as florestas e se tornaram seus
inimigos. Começou a luta pela separação, pela autonomia, pela individualidade,
pelo meu e pelo teu. Passaram a falar línguas diferentes. Conheceram a dor e
tomaram amor pela dor, tinham sede de tormento e diziam que a verdade só se
alcança pelo tormento. Então no meio deles surgiu a ciência. Quando se
tornaram maus, começaram a falar em fraternidade e humanidade e entenderam
essas ideias. Quando se tornaram criminosos, conceberam a justiça e
prescreveram a si mesmos códigos inteiros para mantê-la, e para garantir os
códigos instalaram a guilhotina. Mal se lembravam daquilo que perderam, não
queriam acreditar nem mesmo que um dia foram inocentes e felizes. Riam até da
possibilidade de um passado assim para a sua felicidade, e o chamavam de
ilusão. Não conseguiam nem sequer concebê-lo em formas e imagens
(...)
E, no entanto, se pelo menos
fosse possível que eles voltassem àquele estado inocente e feliz do qual se privaram, e se pelo menos alguém de repente o mostrasse a eles de novo e lhes
perguntasse: querem voltar??eles certamente recusariam. Respondiam-me: ?E
daí que sejamos mentirosos, maus e injustos,sabemos disso e deploramos isso, e
nos afligimos por isso a nós mesmos, e nos torturamos e nos castigamos mais
até, talvez, do que aquele juiz misericordioso que nos julgará e cujo nome não
sabemos.
(...)
Cada um tornou-se tão cioso da sua individualidade que não fazia
outra coisa senão tentar com todas as forças humilhar e diminuir a dos outros, e a
isso dedicava a sua vida. Surgiu a escravidão, surgiu até a escravidão voluntária:
os fracos se submetiam de bom grado aos mais fortes, apenas para que estes os
ajudassem a esmagar os que eram ainda mais fracos que eles mesmos. Surgiram
os justos, que chegavam a essas pessoas com lágrimas nos olhos e lhes falavam
da sua dignidade, da perda da medida e da harmonia, da sua falta de vergonha.
Riam deles ou os apedrejavam. Sangue justo correu nas portas dos templos.
(...)
Por fim, esses homens
se cansaram desse trabalho absurdo, e nos seus rostos apareceu o sofrimento, e
esses homens proclamaram que o sofrimento é a beleza, já que no sofrimento
existe razão. Eles cantaram o sofrimento nas suas cantigas. Eu andava no meio
deles, torcendo as mãos, e chorava diante deles, mas os amava, talvez, até mais
do que antes, quando nos seus rostos ainda não havia sofrimento e quando eram
inocentes e tão belos. Passei a amar a terra por eles profanada ainda mais do que quando era um paraíso, só porque nela surgia a desgraça. Infelizmente, eu
sempre amei a desgraça e a dor, mas somente para mim mesmo, para mim
mesmo, enquanto que por eles eu chorava e tinha pena. Estendia-lhes os braços,
me culpando, me amaldiçoando e me desprezando em desespero. Dizia-lhes que
eu é que tinha feito tudo isso, só eu; eu é que lhes tinha trazido a perversão, a
doença e a mentira! Implorava-lhes que me pregassem numa cruz, ensinava-lhes
como se faz uma cruz.
(...)
Mas eles apenas riam de mim e passaram a me ver como um doido varrido. Eles
me justificavam, diziam que tinham recebido apenas aquilo que eles mesmos
desejavam, e que tudo o que havia agora não poderia deixar de haver. Por fim,
anunciaram-me que eu estava me tornando um perigo para eles e que me
trancariam num hospício se eu não calasse a boca. Então a dor entrou na minha
alma com tanta força que o meu coração se oprimiu e eu senti que estava prestes
a morrer, e foi aí... bem, foi aí que eu acordei.
Naquele mesmo minuto decidi que iria
pregar, e é claro que pelo resto da minha vida! Eu vou pregar, eu quero pregar ?
o quê? A verdade, pois eu a vi, eu a vi com os meus próprios olhos, eu vi toda a
sua glória!
E desde então é que estou pregando!
É que agora vejo tudo isso claro como o dia.
[...] todos seguem em
direção a uma única e mesma coisa, pelo menos todos anseiam por uma única e
mesma coisa, do mais sábio ao último dos bandidos, só que por caminhos
diferentes. Isso é uma velha verdade.
(...)
Porque eu vi a verdade, eu a vi e sei que as
pessoas podem ser belas e felizes, sem perder a capacidade de viver na terra.
Não quero e não posso acreditar que o mal seja o estado normal dos homens. E
eles, ora, continuam rindo justamente dessa minha fé. Mas como vou deixar de
acreditar: eu vi a verdade?não é que a tenha inventado com a mente, eu vi, vi, e
a sua imagem viva me encheu a alma para sempre. Eu a vi numa plenitude tão
perfeita que não posso acreditar que ela não possa existir entre os homens.
Assim, como é que eu vou me desencaminhar? Vou me desviar, é claro, várias
vezes até, e vou usar, talvez, palavras alheias inclusive, mas não por muito
tempo: a imagem viva daquilo que vi vai estar sempre comigo e sempre vai me
corrigir e me dirigir. Ah, eu estou cheio de ânimo, eu estou novo em folha, eu
vou seguir, vou seguir, ainda por mais mil anos! Sabem, eu queria até esconder,
no começo, o fato de que eu tinha pervertido todos eles, mas foi um erro?aí está
o primeiro erro! A verdade, porém, me cochichou que eu mentia e me guardou e
me aprumou o passo. Mas como instaurar o paraíso?isso eu não sei, porque não
sou capaz de transmitir isso em palavras. Depois do meu sonho, perdi as
palavras. Pelo menos todas as palavras principais, as mais necessárias. Mas não
importa: vou seguir e vou continuar falando, incansável, porque apesar de tudo
vi com os meus próprios olhos, embora não seja capaz de contar o que vi. Mas é
isso que os ridentes não entendem: ?Viu um sonho, dizem, delírio, alucinação?.
Eh! Que sabedoria é essa? E como eles se vangloriam! Um sonho? o que é um
sonho? E a nossa vida não é um sonho? E digo mais: não importa, não importa
que isso nunca se realize e que não haja o paraíso (já isso eu entendo!)?bem,
mesmo assim vou continuar pregando. E no entanto é tão simples: num dia
qualquer, numa hora qualquer- tudo se acertaria de uma vez só! O principal é ?
ame aos outros como a si mesmo, eis o principal, só isso, não é preciso nem mais
nem menos: imediatamente você vai descobrir o modo de se acertar. E no
entanto isso é só?uma velha verdade, repetida e lida um bilhão de vezes, e
mesmo assim ela não pegou! ?A consciência da vida é superior à vida, o
conhecimento das leis da felicidade?é superior à felicidade??é contra isso que
é preciso lutar! E é o que vou fazer.
E, quanto àquela menininha, eu a encontrei... E vou prosseguir! E vou prosseguir!