Érika 21/11/2021Pequenos, porém porretas(Aviso de conteúdo: o post trata de temas sensíveis, como suicidio e depressão).
Dostoievski é aquele autor que eu sempre pego já sabendo que vou gostar da obra, não importa qual seja. E de fato: até hoje, os piores livros que li dele - um ou outro conto ou novela - foram no mínimo médios. Por isso também é um autor que eu não tenho receio de enfiar no meio de outras leituras ou pegar em um período ocupado, porque sei que a coisa vai fluir. Não foi diferente dessa vez.
Há muito tempo me recomendavam "O sonho de um homem ridículo", uma das poucas obras dele que não conhecia ainda. Então resolvi comprá-lo na última #festadolivrodausp e, como era fininho, já li assim que chegou. Bateu aquele arrependimento... de nunca ter lido antes! Que história maravilhosa! É forte ? aliás, as duas histórias deste livro são, ambas falam sobre suicídio e são ambas tidas como narrativas fantásticas, "A Dócil" pela forma, o outro conto, pelo conteúdo, que retrata justamente um sonho. Além de também serem dois monólogos.
Em O sonho de um homem ridículo encontramos um homem nitidamente depressivo, estado que, nele, se caracteriza por uma apatia que apenas sentimentos negativos, como dor e pena, conseguem quebrar. O mundo e sua maldade o abatem. Ele planeja seu suicídio, mas na noite em que marcou de cometê-lo, acaba adormecendo e sonhando com um mundo perfeito que ele, recém-chegado lá, acaba corrompendo ao contar uma mentira. O sonho, que o desperta de sua apatia e faz nascer nele amor pela Terra e pelos homens, ainda que defeituosos, é uma descrição sensacional da Queda do homem de uma inocência digna do Éden até chegar ao estado em que a realidade se encontra hoje. O autor sobrevoa a História humana propondo hipóteses para as causas do mal e sua solução, repisando em pontos como verdade vs. mentira e amor vs. egoísmo. Texto curtinho, mas um soco.
"A Dócil" é uma novela um pouco maior, contada do ponto de vista do marido de 41 anos de uma jovem de 16 que se suicidou, que tenta, no velório dela, elaborar as causas que a levaram a essa decisão extrema. Tristíssima, a história é um tratado sobre masculinidade tóxica infinitamente melhor que certas músicas novas por aí.
Explora-se a questão da desigualdade inerente de relacionamentos com diferença de idade (com o homem mais velho), o tratamento de mulheres como objetos compráveis e moldáveis ao gosto do freguês, os riscos da falta de comunicação em um relacionamento e dos comportamentos ensinados aos homens e exigidos deIes que fazem com que a coisa dê errado mesmo em casos em que a de um jeito estranho, há amor. No fim das contas a gente acaba até ficando com uma gotinha mínima de pena do narrador, apesar de ele ser todo errado e ter, sem dúvida alguma, levado a mulher ao estado de desespero que fez com que ela tomasse a decisão extrema. As questões são abordadas de forma nada didática e sim contextualizada, retratando-se também a triste condição da mulher em dependência financeira e presa, por algum motivo, em um relacionamento tóxico. Apesar de o livro se passar ha quase dois seculos e terem ocorrido avanços como a permissão do divórcio e a inserção da mulher no mercado de trabalho, na prática, a história da Dócil encontra eco em muitas histórias reais da atualidade.