spoiler visualizarAntonio 17/11/2022
Um tesouro sucinto de Dostoiévski
Gosto muito de Dostoiévski, mas nesse livro em específico o meu encanto se deu pelo segundo conto. No primeiro, ?A dócil?, o autor retrata um minuciosa movimentação interior no âmbito de um relacionamento amoroso. Muito rico em detalhes, em nuances emocionais e em sinceridade psicológica.
Entretanto no segundo, a melancolia trazida pelo personagem principal, a nebulosidade e a depressão profunda em que ele se encontra, aparentemente desmotivada, são o elemento chave e se justificam de maneira brilhante a partir do sonho utópico e alucinado. A mente de mais um personagem russo médio, rsrs, amargurado, reflexivo e de decisões vigorosas, recebe - ou desperta - uma história que o conduz até a mais profunda reflexão acerca da condição humana. Diante da decisão de cometer um suicídio, o autor tem uma alucinação muito imersiva, tanto pro personagem quanto pro leitor, onde um ser divino e sem face o conduz até um paraíso, em que todas as pessoas vivem de modo? perfeito. Não há maldade, mentira ou dissimulação. Vivem até mesmo pelados, cuidam uns dos filhos dos outros, relacionam-se da maneira mais gentil e respeitosa possível. Todos cumprem perfeitamente seus papéis, convivendo harmoniosamente em comunidade. Absoluta sinceridade e absoluto cumprimento das atribuições. Com isso, uma alegria ímpar e genuína emerge da comunidade que funciona como uma engrenagem encaixada perfeitamente.
Só que o nosso personagem vai até lá? encantado com a sociedade vislumbra um novo modelo de existência. Entretanto? ele carrega consigo todo o seu EU. E o nosso personagem, assim como qualquer um de nós, possui uma série de defeitos, dissimulações, hesitações e? maldade. O livro nesse momento descreve um processo rápido de mistura do personagem com a comunidade e percebe-se que aos poucos os nativos do paraíso, rsrs, começam por imitar os trejeitos do protagonista. De repente, imitam a forma de se comunicar, de dissimular e de agir em geral. Numa aceleração do tempo, o autor percebe que a sua presença e os seus defeitos contaminaram toda aquela sociedade, fazendo com que a comunidade deles começasse a parecer? a nossa.
Então o protagonista é assaltado por uma sensação grave de que precisa reparar-se dos próprios defeitos, já que, em última análise, a responsabilidade das injustiças, desigualdades e crueldades no seu mundo, é também? a sua responsabilidade. Nesse momento ele lembra de uma menina que chorava e pedia um pouco de dinheiro/comida (não me lembro ao certo) no início do livro e sente-se profundamente comovido.
Achei o livro excepcional!!