Victor Dantas 04/05/2021
Sujeito: ausência. presença. reencontro. #44
Voltei a escrever. O curso ultimamente tem tomado toda minha atenção e concentração, enquanto as leituras, por mais que estejam em andamento, ao finalizá-las, não tenho feito mais registro por meio da resenha. Mas, estou voltando. Vamos lá então.
Publicado em 1849, "Niétotchka Niezvânova" é o terceiro romance de Dostoviévski em ordem cronológica. Romance esse que assume uma posição de destaque em toda sua obra publicada, tanto pelo momento em que foi escrito quanto pelos conteúdos que o autor utiliza para construir seu enredo.
Começaremos pelo momento da vida pessoal do Dostoiévski, enquanto ele escrevia o romance.
Desde seu romance de estreia "Gente Pobre", Dostoiévski sempre foi um defensor das ideias socialistas tradicionais, e suas personagens eram uma extensão desses seus ideais de vida.
Em meados de 1848-1849, o autor começou a participar dos debates e movimentos de oposição ao regime totalitário do Império Russo, passando a integrar um grêmio socialista liderado por Mikhail Petrachévski.
Petrachévski era um alvo declarado do imperador da época Nikolai I, tendo nas suas sombras o exército militar do império, buscando a melhor situação para capturá-lo.
Eis que em 1849, os ativistas do grupo são capturados, levados a julgamento e condenados a pena de morte.
Entre eles, estava Fiódor Dostoiévski.
E naquela mesma época, o Dostoiévski estava escrevendo "Niétotchka Niezvânova", que viria ser seu primeiro romance de formação.
A pena estava anunciada. O destino estava determinado.
Mas, as coisas tomam outro rumo.
O imperador Nikolai I, acreditando ser misericordioso, decide anular a pena de morte à poucos minutos antes da execução do grupo na parede de fuzilamento, e declara uma nova pena. Exílio por 8 anos na prisão da Sibéria e 2 anos de serviço militar.
Diante da situação, a escrita do romance é interrompida, Dostoiévski é exilado na Sibéria, enquanto que os capítulos finalizados de "Niétotchka Niezvânova" passam a ser publicados anonimamente em um jornal.
Sendo assim, "Niétotchka Niezvânova" fica como um romance inacabado, com um final abrupto, no entanto, o que foi escrito e publicado posteriormente, foi o suficiente para que os críticos literários, mais tarde, viessem considerá-lo como uma das obras-primas do autor.
O enredo é o seguinte:
Iremos acompanhar a infância, a adolescência e uma prévia da vida adulta de Niétotchka Niezvânova, ou seja, um romance de formação.
A história inicia com Niétotchka apresentando ao leitor, a experiência primária mais sentida por qualquer ser humano, o abandono parental ou a ausência parental.
No caso da Niétotchka, primeiramente ele vivencia a experiência parental, com a morte do seu pai biológico quando ele tinha apenas 2 anos de idade.
Aos 8 anos de idade, Niétotchka vivencia outra ausência parental, a morte de sua mãe, e também o abandono parental, seu padrasto, o elo afetivo mais forte que Niétotchka até então possuía, a abandona após a morte da mãe.
Diante desses dois conflitos centrais, o enredo ganha forma, e o leitor passa a observar e acompanhar os efeitos dessa ausência, desse abandono e dessa ruptura afetiva na vida da Niétotchka. Como essas experiências foram bem precoces na vida da protagonista, o Dostoiévski, se aprofunda na psicologia infantil e adolescente da personagem, como essas situações traumáticas são percebidas, sentidas, por esse sujeitos, e como isso se desdobra na vida adulta.
A relação de Niétotchka com seu padrasto é o principal ponto do enredo, onde dá origem as outros conflitos que a protagonista vivencia ao longo de sua vida. Temos, quase o desenvolvimento do complexo de édipo surgindo entre Niétotchka e seu padrasto. Dostoiévski aprofunda e expande essa questão de uma forma absurdamente delicada, cuidadosa e atenciosa, dando luz a distintos aspectos que contribuem para tal situação.
"Desse modo, eu crescia em nossa mansarda e, aos poucos, o meu amor, ou, dizendo melhor, paixão, pois eu não conheço palavra bastante forte para expressar plenamente o sentimento invencível, torturante, que eu tinha por meu pai, chegou a atingir não sei que irritabilidade doentia" (p.57).
O próprio nome "Niétotchka" e o sobrenome "Niezvânova" carregam uma simbologia, onde em termos gerais o primeiro se refere a uma negativa (Não), e o segundo dá ideia de um ser sem nome (Coisa). Ou seja, o autor quis identificar a personagem como uma expressão de todas as pessoas que são abandonadas, não vistas pela sociedades, ou inferiorizadas.
Além do conteúdo social a respeito do abandono e ausência parental, a paixão paternal, Dostoiévski, aborda também outros temas importantes: a violência doméstica e psicológica; o alcoolismo; e a homoafetividade na adolescência.
A necessidade de vínculo, afeto é tão forte na construção subjetiva da Niétotchka, que em um determinado momento da sua vida, ela passa a se relacionar com outra personagem de uma forma tão profunda, que se desenvolve para um estado de apaixonamento, amor romântico, desejo.
O leitor é convidado a partilhar desse desejo/segredo que a própria protagonista nos confia:
"Resumindo - e me perdoem-me estas palavras - eu estava apaixonada por minha Kátia" (p. 115).
Dostoiévksi, foi absurdamente corajoso em dá voz e representar uma relação homoafetiva, m meados do século XIX, diante de uma nação e cultura extremamente conservadora, machista, homofóbica, que era a Rússia e todo o ocidente.
Situação essa, que obviamente rendeu críticas negativas por parte dos leitores e especialistas literários da época.
Sobre a parte textual, o livro é narrado em primeira pessoa, com uma narrativa puramente introspectiva da protagonista, ou seja, pensamentos e reflexões são as bases do enredo. Os diálogos presentes são bem executados, profundos e reflexivos.
Considero a narrativa de "Niétotchka Niezvânova" puramente sinestésica.
É como se o movimento textual, do enredo, até mesmo o trânsito entre os cenários, estivessem condicionados com o sentir e o observar da personagem. Não sei se me faço entender, só lendo para você identificar ou não esse aspecto, ou talvez seja apenas a minha experiência de leitura mesmo que me causou essa percepção. De todo modo, INCRÍVEL.
No final, "Niétotchka Niezvânova", é sobre o sujeito se reencontrar consigo, se perceber e se afirmar. É sobre ausência e presença. Ciclos.
Bom, esses são alguns dos aspectos que tornam e confirmam a importância e a posição de destaque de "Niétotchka Niezvânova" na obra Dostoiévskana, bem como na literatura russa como todo.
Se você ainda não deu atenção para essa preciosidade literária, aproveite agora a chance para repensar suas prioridades de literárias e inserir "Niétotchka Niezvânova".
Eu fico por aqui, seguindo fiel ao meu Dostô e aproveitando sempre que possível as ocasiões para divulgar a palavra desse genial escritor. #EUSOUDOSTÔFÃ.