Francine 25/01/2016Devorei cada linha, ansiosa por chegar ao final, ao mesmo tempo em que não o queria. Sabe aquelas narrativas que parecem ricas em conteúdo, enredo e criatividade? Do tipo que nos fazem sentir a ausência dos personagens depois do fim? Assim é o conto Tinha uns olhos da cor da tempestade, do autor M. R. Terci.
Nesse conto conhecemos Dezidério, um velho que (por onde passa) provoca comentários entre as pessoas. Isso porque há algo muito estranho com sua sombra... Ela parece ter vida própria, movendo-se sem coerência, esticando-se quando deveria estar pequena.
Dezidério desconversa, como se fosse apenas "ilusão de ótica". O povo não sabe o que vê; a sombra não tem nada de errado. Será?
A verdade é que Dezidério esconde perigosos segredos. Ele era um caipira que morava solitário no meio o mato, em terras distantes da cidade de Tebraria. Mas seu coração (um dos mais puros que você, leitor, há de conhecer) o levou para lugares aos quais nunca deveria ter chegado. Foi seu bondoso coração que o fez encontrar ela, a criança feita de trevas, com olhos dourados e um sorriso de morte. Ela chorava quando Dezidério a viu. O coração bondoso dele a confortou mesmo quando, trêmulo de pavor, sentia ser este um amaldiçoado encontro.
Dezidério temeu a criança trevosa desde o primeiro momento,
mas até com a mais assustadora criatura o homem pode se acostumar.
Ah, pobre Dezidério... A criança trevosa decidiu ter seu coração puro o mais perto possível. Ela roubou sua sombra e tomou o seu lugar. Agora, sob os pés do velho Dezidério, havia uma criatura faminta de maldade. Havia uma companhia indesejada.
Mas o tempo passa e o velho era muito solitário. Acostumou-se com a "morena" aos seus pés. A sombra, de certa forma, lhe era fiel. Foi por causa dela que Dezidério, de repente, se tornou o senhor de uma das maiores fazendas da região de Tebraria. Enriqueceu. Mas seu coração, ainda puro, voltou a colocá-lo no caminho do perigo... E sua sombra, ainda trevas, continuava imprevisível.
Dezidério conquistou meu respeito! Ele se tornou, na literatura, um dos personagens mais queridos que poderia conhecer. Até mesmo uma criança feita de trevas viu nele algo especial. O problema é que, depois de ter sua sombra roubada, a vida desse velho se tornou cheia de obstáculos. O conto é uma crescente de acontecimentos que levam o leitor a torcer por um final feliz. Ao mesmo tempo, levam o leitor a entender que (quando o assunto envolve criaturas feitas de trevas) o caos só tende a piorar.
Em todo momento, os desejos no coração de Dezidério eram nobres.
Sua sombra, por outro lado, não estava pronta para dividi-lo.
Eu adorei esse conto! Devorei cada linha, ansiosa por chegar ao final, ao mesmo tempo em que não o queria. Se pudesse saber mais sobre Dezidério, sobre a criança feita de trevas, sobre Tebraria depois desse conto... não tenham dúvidas de que o faria. O autor soube tecer um conto que se passa durante anos, no século XIX, revelando o passado e o presente do personagem de um modo encantador.
Acho importante dizer que, embora M. R. Terci seja um autor do gênero horror, o que mais gosto em sua narrativa é a valorização dos aspectos psicológicos dos personagens. A criança feita de trevas, por exemplo, não aterroriza por si própria... A tensão existe na proximidade dessa criatura em relação a Dezidério. O autor mantém o mistério e o suspense do horror sem descrições que enojam ou provocam repulsa no leitor. Por isso, não espere encontrar pessoas com as entranhas expostas. Mas esteja pronto para se sentir no lugar de Dezidério, vendo sua sombra substituída por uma criatura desconhecida.
Não há aspectos frágeis nesse conto, mas alerto que a linguagem pode exigir um pouco de atenção do leitor. Isso porque M. R. Terci não poupa na qualidade e sua narrativa é apropriada ao contexto histórico do enredo (o que, para mim, apenas enriquece sua verossimilhança).
Recomendo Tinha uns olhos da cor da tempestade, conto que ingressou para os meus favoritos! E, sendo esse um conto do terceiro volume da série O Bairro da Cripta, convido vocês a aproveitarem a chance de conhecerem esse talento nacional. Tenho certeza de que muitos leitores sentirão vontade de ler mais dos escritos desse autor.
Resenha publicada no blog My Queen Side:
site:
http://myqueenside.blogspot.com.br/2016/01/resenha-129-tinha-olhos-da-cor-da.html