Naty__ 26/09/2016Foi bom, mas poderia ter sido melhorFiquei interessada por Essa menina apenas pelo “De Paris a Paripiranga”. Confesso que a sinopse não havia me atraído, mas fiquei curiosa para saber se o “Paripiranga” do subtítulo se referia a uma cidade do interior da Bahia, mas estava enganada. Na verdade, é um bairro chamado Paripiranga e fica em torno de 7,5 mil quilômetros de distância de Paris.
O livro tinha elementos fortes para me agradar e me envolver, mas não foi isso o que aconteceu em grande parte das vezes. Por se tratar de uma série de histórias do passado de uma garota, algumas conseguiram prender a minha atenção; outras apenas serviram para tornar a leitura mais arrastada do que previ.
Durante muito tempo, ninguém soube o verdadeiro nome de Esperança. Ela era chamada por todos como “Essa menina”, inclusive as pessoas de sua família. No próprio livro, somos apresentados a “Essa menina” e isso é um tanto estranho, pois esse chamamento aparece constantemente na obra – o que acaba desgastando um pouco, já que o leitor fica cansado dessa expressão (embora seja compreensível, seu excesso é enjoativo).
Decidida a reunir num livro as memórias de sua infância, ela desperta a criança curiosa que vivia a escutar a conversa dos adultos. Ao descrever as festas, as comidas e as brincadeiras no quintal, revela ao leitor, ainda que sob a perspectiva infantil, os anseios, fragilidades e sonhos dos que estavam à sua volta.
Com quase 80 anos, Esperança decide reconectar às lembranças do passado. Ela relata eventos políticos do final dos anos 1930 a 1960, além de reconstruir dramas familiares e histórias daqueles que conviveram com essas dores.
Como a história mescla diversos acontecimentos, imaginei que a obra despertaria em mim mais vontade em prosseguir com a leitura, mas estava enganada. Embora capítulos curtos, quando finalizava um não tinha vontade em adentrar no seguinte, então por isso demorei longos meses (nem sei ao certo quantos) para concluir.
Sinto que não fui com uma forte expectativa, mas mesmo assim não consegui ser surpreendida. Embora os termos, as falas e os costumes fossem transmitidos de modo bem nordestino, como a obra sugere, não consegui sentir simpatia pelo conjunto em si. Claro que algumas vivências de Esperança me emocionaram e, quando percebi, estava com os olhos lacrimejando, mas eram poucas. E só. Acabou! Não foi uma obra que prendesse meu fôlego e segurasse a minha emoção até o final.
Uma das passagens que me comoveram foi a história de carinho dela com seu avô. A forma como ele a tratava, como se fosse uma boneca de porcelana, frágil e que poderia ser quebrada a qualquer momento. A demonstração de afeto em todos os lugares, as brincadeiras bem infantis, o jeito tenro e incrível de tratar a neta foi uma cena que tocou profundamente.
Outra cena que mostrou ser carregada de sentimentos foi a prisão do pai de Essa menina. A preocupação de seu avó com a prisão do filho, as agressões sofridas dentro da cela e o constante risco de morrer foram bem narrados e conseguiram passar a dor dos personagens.
A diagramação segue um padrão bem simples, mas que proporciona conforto à leitura. A capa não é uma das melhores, mas para quem curte o estilo estético certamente irá gostar. A revisão foi muito bem feita, o que facilita ao leitor compreender a narrativa sem erros. No mais, para quem gosta de uma literatura nacional, com coletâneas de histórias de uma mesma personagem, certamente se interessará pelo livro. Convido a todos para lerem sem compromisso, sem grandes expectativas, imaginando que poderá se emocionar e se surpreender com o conteúdo.
Quotes:
“Foi a partir desse dia que decidi não mais revelar as coisas que ouvia. Não que eu quisesse ouvir, e houve época em que eu tapava os ouvidos para afastar os sons que me perseguiam. Então, como escudo de proteção, desenvolvi uma quarta habilidade, a da abstração. Devido a esse comportamento, convivi com a pecha de doidinha, doidinha. Todavia, para meu desespero, continuei a ouvir coisas que não queria e que não deveria ouvir. Só vovô e titia pareciam me compreender.”
“Nem sequer sorriu para a filha que nascera sufocada pela corda da vida e por isso teve na frente o nome de Maria. Titia acrescentou o ‘Das Dores’. Quando o bebê abriu o berreiro, parecia que carregava todo o sofrimento do mundo. Minha tia a ofereceu a Nossa Senhora das Dores como afilhada.”
“Nos rompantes de raiva, dona Esmeralda costumava castigar a menina amarrando-a aos pés da mesa, como um cachorro. Trabalhava muito a lavadeira, isso ninguém podia negar. Vivia debruçada no tanque esfregando a roupa da cliente ou manejando o pesado ferro de engomar. Pois foi Das Dores a filha que mais a ajudou, buscando as trouxas de roupa suja, fazendo a entrega das roupas engomadas ou espichando os cabelos das freguesas quando aprendeu o ofício. A mãe nunca reconheceu essa dedicação e, ao contrário do que fazia com as outras filhas, tratava minha amiga com muita rispidez e austeridade.”
“’Eitcha’, costumada dizer vovô, antes de cada frase. E quanto mais pressionado pelas emoções, mais carregava no ‘eeeeeitcha’, que tanto podia ser uma advertência, uma reprovação, uma aprovação, como uma incredulidade. Ele falava oitcho, biscoitcho, deitchar, prefeitchura.”
“Foi com ele que aprendi a andar, a mergulhar no rio, a caçar passarinhos, a subir em árvores, a desbravar o mundo. Com vovô descobri o espetáculo do nascer do dia. Quando eu acordava de madrugada, ele me levava para a beira da calçada, onde sentávamos para receber no rosto, de olhos fechados, os primeiros raios do sol. Acompanhando seu dedo, distingui a lua pela primeira vez, imensa e cheia, e adormecia ao som de sua voz doce e grave.”
“Enquanto papai esteve preso, nossa família se revezou em vigílias na entrada da penitenciária, exigindo provas de que ele estivesse vivo. Uma vez por semana a porta da prisão se abria e ele, apoiado por dois guardas, aparecia. Vovô me levantava bem alto para que ele pudesse me ver. Ele sorria e acenava com as mãos amarradas. E só. A porta se fechava logo. No dia seguinte, lá estávamos nós de novo, exigindo sua libertação.”
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