Fabio.Nunes 08/02/2024
"O povo brasileiro só é feliz quando está dormindo."
Quarto de despejo (diário de uma favelada) - Carolina Maria de Jesus
Editora: Ática, 2014.
"O povo brasileiro só é feliz quando está dormindo."
Favela do Canindé, margens do rio Tietê, cidade de São Paulo.
Nesse lugar vivia uma poetisa, mãe solo de três filhos, sem ensino fundamental completo, que vivia as agruras de uma vida miserável e de insegurança alimentar, num ambiente socialmente nocivo, extenuante, violento e caótico.
Maria Carolina de Jesus catava papel, metais, restos de comida (até do lixo) e buscava ossos no frigorífico, com único intuito de alimentar seus filhos e sobreviver.
Em que pese essa rotina exaustiva ainda encontrava tempo para escrever em alguns cadernos uma espécie de diário, por meio do qual expressava suas ideias, sua sensibilidade e sua revolta; denunciando a realidade dos miseráveis.
Publicado em 1960, este livro reúne os escritos da autora entre julho de 1955 a janeiro de 1960.
Um simples diário em aparência; mas para quem lê é um soco no estômago.
Uma pessoa que vivia uma vida de não-pertencimento. Não pertencia às classes sociais mais abastadas, tampouco sentia-se pertencer à favela. E é neste local de despertencimento que ela tece muitas de suas reflexões sobre a favela, a política, a justiça social, o racismo, a degradação gerada pela pobreza e sobre si mesma diante do mundo:
"Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na sala de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludos, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho a impressão que sou um objeto fora de uso, digno de estar num quarto de despejo." (…) "Estou no quarto de despejo, e o que está no quarto de despejo ou queima-se ou joga-se no lixo."
"Vi os pobres sair chorando. E as lágrimas dos pobres comove os poetas. Não comove os poetas de salão. Mas os poetas do lixo, os idealistas das favelas, um expectador que assiste e observa as trajedias que os políticos representam em relação ao povo."
"Eu tenho tanto dó dos meus filhos. Quando eles vê as coisas de comer eles brada:
- Viva a mamãe!
A manifestação agrada-me. Mas eu já perdi o hábito de sorrir."
(...)
"E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual - a fome!"
"- Não, meu filho. A democracia está perdendo seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquissimos. E tudo que está fraco, morre um dia.
Os políticos sabem que eu sou poetisa. E que o poeta enfrenta a morte quando vê o seu povo oprimido."
"Um sapateiro perguntou-me se meu livro é comunista. Respondi que é realista. Ele disse-me que não é aconselhável escrever a realidade."
"Na minha opinião os atacadistas de São Paulo estão se divertindo com o povo igual os César quando torturava os cristãos. Só que o César da atualidade supera o César do passado. Os outros era perseguido pela fé. E nós, pela fome!
Naquela época, os que não queriam morrer deixavam de amar a Cristo.
Mas nós não podemos deixar de comer."
Este é um livro duro, que joga na nossa cara uma realidade que insiste em existir na atualidade. Da mesma forma, também nos impacta com a existência e a beleza dessa poetisa, que aprendemos a admirar tal qual uma flor de lótus que desabrocha no lodo de um pântano.
Sem dúvidas uma leitura extraordinária e fundamental.
"A noite está tepida. O céu já está salpicado de estrelas. Eu que sou exótica gostaria de recortar um pedaço do céu para fazer um vestido."
"Eu estou começando a perder o interesse pela existência. Começo a revoltar. E a minha revolta é justa."
"Eu estava tão nervosa! Acho que se eu estivesse num campo de batalha não ia sobrar ninguém com vida."