Andrey 16/07/2022
Comentários sobre as edições traduzidas por Brandão
Meu objetivo com esta resenha é: fornecer informações sobre a edição “Ele que o abismo viu: epopeia de Gilgámesh” de tradução e com comentários do professor Jacyntho Brandão da editora Autêntica.
A editora Autêntica, por meio da coleção Clássica, lançou duas versões, ambas traduzidas por Brandão: a) a primeira com comentários e certas particularidades; b) a segunda sem comentários.
Diante da edição dessas duas versões, tenho a intenção de contribuir com o leitor desejoso de acessar esta obra, para que possa optar por aquela versão que melhor atenda aos seus anseios. Destaco, no entanto, que somente li integralmente a primeira das versões, i. e., aquela com comentários.
A edição com comentários foi publicada ineditamente em 2017 – possuindo várias reimpressões – com a tradução direta do acádio para o português pelo professor Jacyntho Lins Brandão, quem também insere introdução e comentários. Esta edição pode ser subdividida em três partes – além das referências e do índice onomástico: introdução, que compreende as páginas 13 a 42; a tradução da epopeia, inserida nas páginas 43 a 135; e comentários do tradutor, da página 136 à página 306.
Observe-se, então, que os comentários do tradutor não foram alocados em notas de rodapé ou de final de capítulo, mas em uma sessão autônoma. Ademais, acredito que uma sessão destinada aos nomes próprios utilizados, sobretudo dos deuses, seria muito útil.
Na edição comentada, logo nos primeiros parágrafos da introdução, Brandão sumariza o enredo da epopeia de Gilgámesh, o que pode ser incompatível com a intenção de alguns leitores que desejam conhecer a história por si mesma. Para além disso, de forma sucinta, mas suficientemente aprofundada, Brandão discorre sobre aspectos atinentes aos nossos conhecimentos sobre a tradição literária antiga, a inserção da epopeia de Gilgámesh nessa tradição e sobre aspectos da tradução.
Diferentemente, a introdução da versão sem comentários é mais enxuta. Não conta com um resumo do enredo, sobre pormenores das civilizações mesopotâmicas ou sobre o nosso conhecimento acerca delas. Limita-se, em geral, a mencionar as versões existentes sobre a epopeia e como a tradução foi construída, mas de forma muito mais pragmática.
Seja como for, na minha opinião, apesar da natureza “acadêmica” da introdução na edição comentada, considero-a essencial para o melhor aproveitamento na leitura da epopeia traduzida. (Não me deterei mais pormenorizadamente aqui, porque na prévia de visualização de ambas as versões no site da editora, a introdução completa de cada uma delas está disponível).
A propósito disso, parece-me ser a natureza “acadêmica” da edição comentada que tem causado desconforto em alguns leitores. Talvez não tanto pela introdução em si, mas pelas opções escolhidas na elaboração da tradução e sua relação com a sessão de comentários.
Nas palavras do coordenador da coleção, Oséias Ferraz, a coleção clássica da Autêntica seria destinada “[...] aos leitores atentos [...] que desejam ou precisam de um texto clássico em edição acessível, bem cuidada, confiável”. Por esse motivo, não seriam estas edições “acadêmicas”.
Apesar disso, Brandão se justifica na introdução afirmando que “[...] o que se espera de um tradutor de línguas clássicas são traduções comentadas” (p. 32). Nesse espírito, os comentários estão repletos de reflexões não apenas sobre traduções alternativas, traduções comparadas e notas sintáticas ou semânticas, mas também sobre aspectos culturais, paralelos a outros textos antigos, a forma de reconstituição dos versos e conjunturas sobre o significado de certos trechos.
E aqui é conveniente apontar que, existindo distintas versões históricas desta epopeia – mais ou menos completas – há tradutores que optam por reconstituir o texto, tornando-o menos lacunoso, a partir da informação de distintas versões. Esta, contudo, não é a opção adotada por Brandão na edição comentada. Em seus dizeres “[...] eu não quis produzir um texto compósito, em que as lacunas nos manuscritos do poema clássico se completassem com as lições da versão antiga, de fragmentos das versões médias ou mesmo de traduções para outras línguas, em especial o hitita, como muitas vezes se faz, oferecendo ao leitor um texto que jamais existiu em época alguma ou lugar”. (p. 27).
A opção de Brandão é nítida. Seu objetivo inicial, menos que recontar a epopeia de Gilgámesh em português a partir de distintas versões, é traduzir a versão clássica então atribuída a Sin-léqi-unnínni.
Assim, a fidelidade a essa versão vai implicar que, na ocorrência de danos às tabuinhas, os versos não são reconstituídos a partir de outras fontes (talvez, a única exceção, é o uso pontual de Atrahasis na tabuinha 11). E esse é o principal aspecto que diferencia a versão com comentários da versão sem comentários, pois, mesmo nas tabuinhas mais bem preservadas (1, 6 e 11) há significativas lacunas.
A existência dessas lacunas pode ser problemática. Por exemplo, nos versos 59 a 61 da tabuinha 3, lê-se “----/---- para/ ----/ ---- brilhar”. Em outros casos, como na tabuinha 2 (conforme explica-se nos comentários, p. 177) e na tabuinha 7 (cf. comentários da p. 231), estima-se que por volta de 25 versos inteiros foram perdidos.
Em decorrência disso, os comentários expostos na terceira parte não são apenas acessórios para a leitura da tradução da epopeia, mas se mostram essenciais para a compreensão de seu enredo. Desse modo, por existirem comentários das mais variadas naturezas, a leitura visando o seguimento do enredo pode se tornar mais pesada e morosa.
A versão sem comentários, diferentemente da proposta inicial de Brandão, privilegia o seguimento da narrativa, ao reconstruir a epopeia da forma mais completa possível, valendo-se de outras fontes que não a versão clássica.
Colocadas essas breves informações, passo a algumas considerações finais.
Primeiramente, acho louvável que a editora Autêntica tenha se preocupado em trazer duas versões visando alcançar dois perfis distintos de leitores a partir de um trabalho nitidamente sério de pesquisa e tradução.
Sobre a versão sem comentários – e acredito que isso é uma escolha deliberada da editora – esta edição deve atender quem busca ter o primeiro contato com a história (e, digamos, gostaria de não ter spoilers) ou privilegia o relato da epopeia. Em contrapartida, convém ter em mente que este relato é, inevitavelmente, uma adaptação. Além disso, a versão com comentários auxilia a entender que ainda existem muitas dúvidas sobre a epopeia, e que a versão mais completa poderia desestimular outras interpretações (ou mesmo traduções) que seriam igualmente possíveis. (Repito, contudo, que não li essa versão integralmente para pontuar justamente).
A versão com comentários, por sua vez, tem o ponto baixo na fluidez da leitura, sendo sempre dependente dos comentários. É uma leitura que exige dois marcadores. Por outro lado, as reflexões ali existentes nos ajudam a compreender a profundidade e a complexidade que ainda hoje incidem sobre o nosso conhecimento acerca da epopeia. Consequentemente, convida-nos a sermos “co-responsáveis” pela sua compreensão, ao apontar distintas perspectivas que, cada qual com seu valor, oportuniza diferentes interpretações.
Na minha opinião, ainda que a leitura da versão com comentários demande certa paciência, seu valor não pode ser desprezado. Somente os comentários relativos à Tabuinha 11 já seriam suficientes, para mim, para optar por esta versão.
De todo modo, para quem quiser experimentar o formato dado à tradução na versão com comentários, e de forma gratuita, sugiro a leitura do texto publicado por Brandão na revista “Nuntius antiquus”, v. 10, n. 2, p. 125-160, de 2014. Apesar de existirem algumas diferenças na tradução e no local onde são inseridos os comentários, esta tradução da Tabuinha 1 se assemelha ao formato final dado à edição com comentários.