Lista de Livros 24/04/2024
Lista de Livros: Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre
Parte I:
“Se das ciências, em geral, não é possível afastar o hipotético, a necessidade de hipóteses aumenta nas chamadas ciências sociais, sempre que nelas se empreenda obra de compreensão e não apenas de descrição; tentativa de interpretação e não apenas de mensuração do comportamento de um grupo humano. Em qualquer obra dessas é também maior que nas de ciências chamadas exatas a necessidade de história; pois como salienta, com a lucidez de sempre, o professor Morris R. Cohen, “necessita-se de mais história para compreender-se a reação de um búlgaro a um sérvio que para compreender-se a reação da água a uma corrente elétrica”. Necessita-se igualmente de muita história – de história total mas principalmente de história orientada pela psicologia – para compreender-se a reação de um brasileiro de hoje – produto de quatro séculos de Brasil, isto é, de quatro séculos de interpenetração de influências de culturas diversas, dentro de condições peculiares a determinado espaço geométrico, e não apenas social – a um sueco ou a um belga, produtos de outros espaços, de outras experiências, de outras combinações de cultura.
A sociologia que se faça sem história e sem psicologia, esta sim, é uma sociologia vã ou, pelo menos, precária; não há “eloquência de números” que lhe dê solidez ou autenticidade. Sempre lhe faltará o apoio que vem do conhecimento das raízes que prendem à terra, à carne e ao espírito dos homens qualquer instituição. Pois considerados no vácuo, instituições ou grupos humanos podem ter extraordinário interesse como curiosidades etnográficas ou aparências estéticas mas não como realidades sociológicas. A realidade sociológica é das que não prescindem de história. O conhecimento sociológico do brasileiro não é possível sem o conhecimento de suas origens e do seu desenvolvimento considerados sociologicamente: sociologia genética. A sociologia genética sendo principalmente a sociologia da família, desta seria erro básico separar o estudo sociológico da casa que corresponde ao tipo dominante de família, inseparável, por sua vez, das condições físicas e sociais de ocupação ou dominação do espaço por grupo humano: ecologia. E não apenas das técnicas de produção: economia. Sempre eco, isto é, casa.”
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Parte II:
“A transição do patriarcalismo absoluto para o semipatriarcalismo, ou do patriarcalismo rural para o que se desenvolveu nas cidades, alguém já se lembrou de comparar à transição da monarquia absoluta para a constitucional. A comparação é das melhores e abrange alguns dos aspectos mais característicos do fenômeno jurídico, tanto quanto do moral e social, daquela transição. (...)
O absolutismo do pater famílias na vida brasileira – pater famílias que na sua maior pureza de traços foi o senhor de casa-grande de engenho ou de fazenda – foi se dissolvendo à medida que outras figuras de homem criaram prestígio na sociedade escravocrática: o médico, por exemplo; o mestre-régio; o diretor de colégio; o presidente de província; o chefe de polícia; o juiz; o correspondente comercial. À medida que outras instituições cresceram em torno da casa-grande, diminuindo-a, desprestigiando-a, opondo-lhe contrapesos à influência: a Igreja pela voz mais independente dos bispos, o governo, o banco, o colégio, a fábrica, a oficina, a loja. Com a ascendência dessas figuras e dessas instituições, a figura da mulher foi, por sua vez, libertando-se da excessiva autoridade patriarcal, e, com o filho e o escravo, elevando-se jurídica e moralmente. Também o casamento de bacharel pobre ou mulato ou de militar plebeu com moça rica, com branca fina de casa-grande, com iaiá de sobrado, às vezes prestigiou a mulher, criando entre nós – já o acentuamos – uma espécie de descendência matrilinear: os filhos que tomaram os nomes ilustres e bonitos das mães – Castelo Branco, Albuquerque e Melo, Rocha Wanderley, Holanda Cavalcanti, Silva Prado, Argôlo, Osório – e não os dos pais. O elemento de decoração social não podia deixar de repercutir moral ou psicologicamente, em tais casos, a favor da mulher.”
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Parte III:
“Se, em grande número de casos, a cristianização ou a europeização de ameríndios e de africanos e de seus descendentes foi obra de superfície, não os arrancando senão aparentemente de seus hábitos de “raças inferiores” transformadas em classes servis, noutros casos resultou em fazer de descendentes de selvagens ou primitivos uns quase fanáticos das ortodoxias – a política, a moral e a religiosa – por eles mal assimiladas dos primeiros europeus. Nessas ortodoxias – talvez mais por fidelidade ou apego à região mais propícia aos homens de cultura primitiva e de economia antes rústica que urbana, isto é, o senão, que por motivos principalmente de “raça” ou de classe – alguns grupos se fixaram com unhas e dentes, contra desvios ou invasões dos próprios brancos do litoral. Daí o seu modo nem sempre lógico de participação em lutas civis travadas no Brasil, depois de já aqui estabelecidas formas patriarcais de convivência. Em vez de investirem contra as ordens estabelecidas pelos brancos, a atitude de caboclos e homens de cor foi, mais de uma vez, a de defesa de valores europeus ortodoxos, ou já tradicionais, no Brasil. Valores que julgavam ameaçados por inovações.”
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Parte IV:
“O estudo minucioso da composição social e, quanto possível, étnica, das nossas irmandades, é dos que mais contribuem para o esclarecimento das condições de raça, classe e região que, tomadas em conjunto – nunca isolada umas das outras – caracterizam a formação brasileira. Sem o exame em conjunto de condições que quase sempre se interpenetraram entre nós, como as referidas, de raça, de classe e de região, arrisca-se o estudioso da formação brasileira a generalizações falsas sobre o indivíduo ou grupo que considere representativo; pois, no Brasil, generalizações firmadas em critérios de interpretações puras, válidas para países de maior pureza ou maior nitidez hierárquica na sua composição social ou étnica, perdem a validez ou o vigor. Assim não se pode afirmar da nossa formação que tenha sido substancialmente aristocrática no sentido de uma raça, de uma classe ou de uma região única. O que a nossa formação tem tido é forma aristocrática dentro da qual vêm variando substâncias ou conteúdos de raça, de classe e de região, ora exaltando-se como nobre o branco (e dando-se aos indígenas o direito de adotarem velhos nomes portugueses de pessoa ou família), ora o caboclo (cujos nomes passaram em certa época a substituir os europeus); ora glorificando-se o senhor de engenho, isto é, da região da cana, ora o fidalgo de sobrado, isto é, da região ou área urbana (de onde a tendência contemporizadora para o senhor rural mais rico ter tido sempre sobrado na cidade mais próxima de suas terras e, vice-versa, o senhor mais rico de sobrado ter tido sempre engenho, fazenda ou quinta socialmente decorativa do seu poder econômico de burguês); ora fazendo-se do homem do litoral o herói da formação nacional, ora considerando-se o verdadeiro herói dessa formação o paulista, o sertanejo ou o montanhês; ora fazendo-se do açúcar o artigo-rei da economia nacional, ora transferindo-se essa majestade para o café. (...)
Encontram-se em nossa formação social predominâncias de figuras senhoris ou superiores, pelo conjunto das condições de região de origem, de classe e de raça, ou por uma dessas condições, no momento decisiva, de superioridade ou prestígio: o branco em relação com os indivíduos das raças e sub-raças de cor; o proprietário de vastas terras de lavoura ou criação e das respectivas casas-grandes de residência, em relação com os moradores sem eira nem beira dessas terras e com os escravos ou servos necessários à exploração agrária ou à atividade pastoril ou mineira; o cristão-velho em relação com o novo e com os demais católicos; o brasileiro nato em relação com o reinol ou com o brasileiro naturalizado; o habitante do litoral mais europeizado em relação com o do interior mais agreste. Mas nenhuma dessas predominâncias foi, muito menos é hoje, absoluta, tendo havido frequentes casos de inversões e confusões de superioridades: figuras senhoris sob a pele escura de raça geralmente considerada servil ou inferior; sertanejos superiores aos homens do litoral em poder econômico e em prestígio político; proprietários rurais dependentes de tal modo de comissários de cidades a ponto de tornarem seus vassalos econômicos.”
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Parte V:
“O conde de Valadares, em Minas, organizara ainda na era colonial regimentos de homens de cor com oficiais mulatos e pretos.761 Um desprestígio para a melhor aristocracia da terra. Aliás, nos tempos coloniais, chegara a haver sargento-mor e até capitão-mor mulato; mulato escuro, até, como o que Koster conheceu em Pernambuco. Mas esses poucos mulatos que chegaram a exercer, nos tempos coloniais, postos de senhores, quando aristocratizados em capitães-mores, tornavam-se oficialmente brancos, tendo atingido a posição de mando por alguma qualidade ou circunstância excepcional. Talvez ato de heroísmo, ação brava contra rebeldes. Talvez grande fortuna herdada de algum padrinho vigário. Quando o inglês perguntou, em Pernambuco, se o tal capitão-mor era mulato – o que, aliás, saltava aos olhos – em vez de lhe responderem que sim, perguntaram-lhe “se era possível um capitão-mor ser mulato”. (...)
Verificaram-se casos semelhantes nos Estados Unidos. Em certo velho burgo do Estado de... nos foi um dia apontado – isto já há largos anos – indivíduo ilustre admitido e até cortejado na sociedade branca mais fina e mais exclusivista do lugar, e de quem entretanto se sabia ter ascendente africano, embora remoto. Numa terra em que a simples suspeita de tal ascendência basta para determinar o mais cruel ostracismo social, o caso nos pareceu espantoso. Esclareceram-nos, porém, que o indivíduo em questão tivera outro ascendente – ou seria o mesmo negroide? – entre os heróis mais gloriosos da guerra da Independência. O que lhe arianizara a raça e lhe aristocratizara o sangue.”
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