kleris aqui, @amocadotexto no ig 28/09/2017Judith criou um recorte social com uma delicadeza incrível. (Esta resenha teve corte de quotes e imagens do livro; visite o link para conferir)
Uma das coisas mais incríveis que a literatura pode nos proporcionar é nos colocar dentro da cabeça de outra pessoa, enxergar o mundo através de sua visão e nos permitir observar como suas engrenagens funcionam. Em O pescoço da Girafa nós temos justamente isso. Através do recurso de fluxo de pensamento, adentramos a mente de uma professora de biologia que possui uma compreensão muito particular da vida ao redor: Inge Lohmark crê piamente nos princípios fundamentais da natureza – melhor dizendo, na seleção natural.
Inge é uma senhora impassível. Ao termos acesso direto aos seus pensamentos, acompanhamos seu dia a dia, seu trabalho, vida pessoal e observações. Essa narração é tão detalhista para nos ilustrar o que Inge está vendo, passando, considerando, que vez ou outra você pode se perder. Mas essa é a natureza do pensamento, né, nem a gente consegue acompanhar aos nossos às vezes. E os de Inge, em seu papel extremista e formal, são tão ácidos que até chegam a ser engraçados – só que de um modo bem trágico.
O pescoço da Girafa é, nesse sentido, um livro muito intrigante e instigante. Próprio do estilo, não há história, mas sim um recorte de percepção. É nessa pouca ação que a autora quer nos mostrar sentimentos de uma maneira mais nua e crua. Ali, em sua própria cadência, eles se libertam. As excessivas descrições e concepções, por sua vez, são pistas para o leitor sacar o que há de natureza e humanidade na personagem.
Ao nos colocar nessa posição, Judith nos prende a uma persona absurda. Orgulhosa, exigente, distante. Se num primeiro momento a nossa aproximação nos permite rir das loucuras que são as concepções de Inge, noutro, quando passamos a entender mais das suas engrenagens, esse riso passa a ser mais contido... até parar de vez. Ficamos incessantemente em busca de mais e mais traços de humanidade nela, como que para provar que existe, em algum lugar, mesmo nas pessoas mais amargas.
Inge na verdade é a porta para compreendermos a seleção natural em prática; aliás, em seu autoritarismo de professora, traz à tona o sistema de educação ultrapassado que ela, como outros, insiste em manter. Não apenas somos socados no estômago pela inacessibilidade emocional da personagem, mas também pelo próprio caminhar do ambiente em que ela vive; ela não se conecta a pessoas – e por não se conectar, muita coisa passa atropelado por suas vistas (como família e responsabilidade social) sem qualquer intervenção.
A leitura de O pescoço da Girafa é interessante pela empatia – à Inge e às pessoas ao seu redor – mas também pela crítica social e escolar. Não é porque o homem, biologicamente, é um animal, que ele se comportará como tal; na vida em sociedade as leis são outras. Diferentemente do mundo animalesco, temos a vantagem do pensamento, da estima e do respeito.
Judith criou um recorte social com uma delicadeza incrível. Nunca fui muito fã de fluxo de consciência/pensamento, mas neste livro em particular a leitura fluiu em um ritmo bom. Sempre curti a ideologia da seleção natural e do pescoço da girafa, embora nunca muito dada aos aspectos biológicos em si. A sacada do livro – corroborada pela capa linda – puxa das entrelinhas e da nossa sensibilidade para compreender a interação social ali desenhada. Vale a nota para observar os cabeços das páginas que trazem, assim como as imagens surpresas nas páginas, mais pistas para a leitura.
Recomendo, porém, com ressalvas, pelo estilo incomum. Apesar de uma leitura rápida, a maneira como os elementos literários aqui se encaixam pode ser um desafio para alguns leitores, pois há muita sugestão no ar, como um filme silencioso. Indico a quem curte o lance do fluxo de pensamento, ler comportamentos, críticas sensíveis, altas descrições, o embate ciência biológica vs ciências sociais. É por certo um livro que fica na cabeça para ser digerido por semanas.
Percebe-se que O pescoço da girafa foi um livro difícil de parir, imagino que tanto pra escrever quanto pra trabalhar nele para publicação e tradução, mas é daqueles que ao trabalho final a gente concorda que valeu a pena. Aliás, ele faz parte de uma leva de livros alemães que estão chegando ao Brasil por conta da parceria de tradução do Goethe Institute. Espero em breve ler mais livros da autora – apesar de ser seu terceiro, é o livro de estreia nas terras tupiniquins.
E não posso deixar de dizer que dou RT no texto da contracapa!
site:
http://www.dear-book.net/2016/06/resenha-o-pescoco-da-girafa-judith.html