jota 04/09/2020Avaliação da leitura: 4,0/5,0 – BOM (não tanto quanto Espere a Primavera, Bandini, mas ainda assim prazeroso)Mal parodiando Chico Buarque, esse moço tá diferente, já não o reconheço mais, não é o mesmo Arturo Gabriel Bandini de outros livros atrás. Ele não se parece tanto assim com o rapaz de Espere a Primavera, Bandini (1938) nem com o jovem adulto de Pergunte ao Pó (1939), volumes que com este O Caminho de Los Angeles (escrito em 1936, mas publicado postumamente em 1985) mais Sonhos de Bunker Hill (de 1982, que será minha próxima leitura) compõem a tetralogia de histórias vividas pelo alter ego do escritor John Fante (1909-1983). Aqui Bandini está muito sensível e temperamental, afundado em revistas para adultos e em obras de autores tão complexos quanto os pensadores alemães Friedrich Nietzsche e Oswald Splenger, que ele mesmo confessa em determinado trecho pouco entender, vai apenas lendo aquelas palavras difíceis todas, resmungando-as.
Acredita que um intelectual, um escritor (ele já tem até o título para seu primeiro ensaio, “Uma interpretação psicológica sobre o estivador ontem e hoje”, mas depois se decide pela ficção), que é o que ele pretende ser brevemente, tem de ter uma ótima bagagem cultural. Certo, mas, ficar lendo e depois citando a torto e a direito ideias contidas em Assim Falou Zaratustra (Nietzsche) ou em A Decadência do Ocidente (Splenger) sem entendê-las, revela profundamente sua imaturidade, muito mais do que propriamente conhecimento conscientemente acumulado. Assim, não irá muito longe, muito além de seu (péssimo, como ele o considera, mas precisava de grana) emprego numa fábrica de conservas de pescado em Long Beach. Trabalho arranjado por seu tio, depois de tantos outros de onde quase sempre era demitido porque ficava lendo em vez de trabalhar. Ou porque não se dedicava com afinco ao que deveria fazer.
Bandini afirma a certa altura que já havia lido centenas de livros, que Nietzsche é seu mestre, não apenas leu as obras dele e a de Splenger, também Kant, Schopenhauer e outros. Ele conversa com o leitor sobre isso neste pequeno trecho, começando com Nietzsche:
“Dia após dia eu o lia, sem entender nada, nunca me preocupando também, mas lendo porque eu gostava de uma palavra resmungada após a outra, marchando através das páginas com ribombos sombrios e misteriosos. E Schopenhauer! Que escritor! Durante dias eu o li e reli, lembrando um pouco aqui, um pouco ali. E as coisas que dizia sobre as mulheres! Eu concordava. Exatamente o que eu pensava sobre a matéria. Ah, meu camarada, que escritor!” E vivia tão metido dentro dos livros que quase não tinha amigos. Melhor, tinha um, Jim, dono da lanchonete que frequentava de vez em quando, e que o admirava justamente por sempre vê-lo com livros.
O jovem Bandini morava não mais numa casa, mas num apartamento apertado, nem mesmo tendo um quarto para si, dormia na sala. Ali, parece estar sempre enfezado, costuma reagir com rispidez para com a mãe e a irmã, briga muito com elas. Mostra certa arrogância e desprezo geral pelos outros, não apenas pelos que não liam avidamente como ele. Pensa muito no sexo feminino, na mulher como objeto sexual (mais ou menos como Schopenhauer) e se masturba na banheira enquanto contempla fotos de modelos e artistas recortadas de uma revista. Enquanto não se transforma num escritor de sucesso, tem mesmo é de trabalhar numa fábrica de processamento de pescado (bem fedida e asquerosa, como ele mesmo narra) para sustentar-se e à mãe viúva e a irmã, uma família um tanto diferente daquela de Espere a Primavera, Bandini; não sei o que aconteceu aqui, como também apontaram outros leitores.
Bem, é 1935, estamos na Califórnia e Bandini tem 18 anos agora. Já havia terminado o ensino secundário e precisava trabalhar: ainda são os tempos sombrios da arrasadora depressão econômica iniciada em 1929. No novo emprego no porto ele é relaxado, respondão, trata com preconceito os filipinos, mexicanos e japoneses que com ele trabalham com pescado. Julga-se superior, o único de pele branca ali, os outros são amarelos e ignorantes. Além disso, é quase sempre machista, misógino, mitômano, grosseiro etc. Apesar disso tudo, perdoamos Bandini: ele também sofre preconceito por ser ítalo-americano, um carcamano, como o chamam os anglo-americanos. E também porque ainda é um adolescente, e como tal é inseguro, frágil, ridículo e engraçado ao mesmo tempo. Então o acompanhamos no caminho para Los Angeles ou por qualquer outro caminho que tomar, porque é um personagem que aprendemos a gostar demais pelos outros livros de Fante, também pelo próprio Fante, admirável escritor. E tudo é ficção. Ou quase tudo, pensando melhor...
Tinha pensado em encerrar nas reticências, mas não resisti e transcrevo outro trecho divertido de O Caminho de Los Angeles, que talvez até o sisudo Splenger aprovasse se não tivesse morrido justamente no ano em que Fante ainda escrevia este livro, 1936:
“Certa vez eu lia no parque, estava deitado na grama. Havia pequeninas formigas pretas entre as folhas de relva. Olhavam para mim, rastejando sobre as páginas, algumas querendo saber o que eu fazia, outras não interessadas e passando ao largo. Subiram pela minha perna, atônitas numa selva de pêlos castanhos, e eu levantei a calça e as matei com o polegar. Fizeram o melhor que podiam para escapar, mergulhando freneticamente para dentro e para fora do matagal, às vezes parando a fim de me enganar com a sua imobilidade, mas nunca, apesar de todos os seus truques, conseguiram escapar à ameaça do meu polegar. Que formigas estúpidas! Formigas burguesas! Tentando enganar alguém cuja mente se nutria da carne de Spengler e Schopenhauer e dos grandes! Foi a sua desgraça – o Declínio da Civilização da Formiga. E assim eu ia lendo e matando formigas.”
Agora é o fim mesmo. Lido entre 01 e 04/09/2020.