livroselabirintos 09/08/2023
De café, literatura e sonhos
- Não é fácil escrever sobre nada.
Era o que um vaqueiro ia dizendo quando entrei no sonho. Vagamente bonito e intensamente lacônico, ele se balançava numa cadeira dobrável inclinada para trás, a aba do seu chapéu Stetson roçando a parede pardacenta no lado de fora de um café solitário.
Esse fragmento do texto de abertura de Linha M (2016), da “poetisa do punk” Patti Smith, foi amor à primeira vista. Leio e releio. Torna-se mais intenso na medida que vou descobrindo a arte narrativa de Patricia Lee Smith. Amante de literatura e de café, vou mapeando em sua odisseia pessoal os escritores admirados por ela. Temos muito em comum. Gostamos de Haruki Murakami, Sylvia Plath e o maldito, Rimbaud.
Antes mesmo de ouvir a música/poesia de Patti Smith, tornei-me fã de sua escrita. Há certa cronologia nas viagens narradas pela escritora. Linha M me levou a Só garotos, livro anterior (2011). O amor por orações, vinda de uma concepção própria de Deus, equiparou-se ao amor pelos livros.
Notei um traço que se repetiria nos outros: o modo como ela costura a memória, que vai e volta, como um pêndulo. Nesse movimento, ela inclui sonhos misturados à imaginação.
Sua narrativa memorialista me pegou. Estreando nesse gênero, a cantora conta uma trajetória fabulosa ao lado de Robert Mapplethorpe. No prefácio de Só garotos, a menção a um sonho se segue à notícia da morte de Robert. Mesmo que leia dez vezes, sinto um nó na garganta e penso como foi bonita a relação dos dois. Adulto, é como se Mapplethorpe tivesse vivido a infância de Smith. A pedido dele, ela dividia a memória em forma de histórias, e assim enganavam a fome na conturbada década de 1960.
Sensível ao seu tempestuoso companheiro de juventude, Patti Smith reconheceu nele um artista, aquele que via o que os outros não conseguiam. Enxergava nele a elegância de Baudelaire. A rebeldia de Rimbaud. Os meus olhos se iluminam diante desses nomes. Meu coração estremece. Por saber que ela furtou um exemplar de Illuminations, cacei um para mim. É um tesouro.
Comecei a fazer um mapa literário a partir das leituras e experiências de Patti Smith. Devo dizer que, se no primeiro livro, há capítulos inteiros dedicados a Robert Mapplethorpe, em Linha M há forte presença de Fred Sonic Smith, seu único marido, com quem teve dois filhos.
Gostei de desvendar, por esses dias, o mistério daquele vaqueiro escritor, que estava escondido em meus pensamentos e presente nas linhas oníricas da poetisa. Com O ano do macaco (2019) às mãos, tive certeza de que sempre fora Sam Shepard. Referência da vida toda de Patti Smith. Quando você lê esses livros, nem precisa ser em ordem, percebe como a escritora elabora as pistas. Descobre que ela lê histórias policiais contemporâneas e passa noites em hotéis sem perder suas séries sobre crimes preferidas.
Li praticamente a metade de O ano do macaco e percebi um continuum, como algo planejado desde Só garotos e que paulatinamente toma forma. Como, por exemplo, a presença de 2666, do Roberto Bolaño, obsessão confessa de Patti em Linha M, em que podemos apreciar uma foto da cadeira do escritor chileno. Patti Smith também fotografa as coisas de que gosta. O livro de Bolaño é mencionado com mais detalhes nesse último. Gosto de como a escritora cria ambientes que refletem as histórias que aprecia. Nesse caso, ela está em um café prestando atenção em conversa alheia. Três jovens discutem sobre “A parte dos crimes” (2666), que trata de assassinatos não solucionados de várias garotas de Sonora.
Temos diante de nós uma discussão literária, quando um dos jovens pergunta ao outro se a história era real ou ficcional. Usar um fato real num trabalho de ficção faz com que se torne ficção? Considerei a questão pertinente.
É interessante perceber que a autora utiliza as suas leituras na forma como organiza a narrativa. Ela aproveita a ocasião para trazer os sonhos de Roberto Bolaño, mencionados em “A parte dos críticos”, e imediatamente me lembro de que ela própria conduz suas histórias utilizando seus sonhos como recursos. Nesse aspecto, fiquei muito interessada nas quebras de linhas “nada ortodoxas” do autor de 2666. Será que, em seus romances, a mistura de cenas reais e oníricas é recorrente?
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