Gustavo 15/04/2024
De tudo que li do Cortázar até agora, esse deve ter sido o livro mais enigmático numa primeira leitura, porque todos os contos parecem começar já na metade, te inserindo no meio da história. Alguns são bem fáceis de acompanhar ('Ai, mas onde, como' e 'Os passos no rastro'), outros demandam um pouco de abertura ao imaginário real-fantástico do cronópio que os escreveu ('Verão', 'Manuscrito achado num bolso', 'Lugar chamado Kindberg' e 'As fases de Severo') e um deles me foi totalmente enigmático ('Pescoço de gatinho preto').
É interessante a constante presença da morte em metade dos contos. Em 'Liliana chorando', o narrador imagina os acontecimentos que se darão depois de sua morte. Em 'Ai, mas onde, como', Cortázar expressa seus sentimentos sobre a morte e a saudade de Paco, seu amigo para quem diversos contos são dedicados. Nesse conto, achei linda a forma como ele descreve a permanência da pessoa que morreu para os que ficaram. Em 'Lugar chamado Kindberg', a morte do narrador aparece como forma de libertação da consciência de sua idade e das questões (pedófilas) em relação às mulheres, com as quais ele nunca conseguiu lidar. Em 'As fases de Severo', novamente a morte aparece em seu caráter místico: a morte de Severo é acompanhada de perto por seus amigos e familiares, que assistem aos seus delírios na espera de ter a clarividência sobre suas próprias vidas, pois o morto seria capaz de dizer quem irá morrer e quando.
O uso do metrô como ambientação de dois contos também me chamou a atenção. Em ambos, esse meio de transporte, que existe como um lugar de passagem, espaço do transitório, do subterrâneo (literal e figurativamente), é o local escolhido pelo(s) narrador(es) para empregar jogos de flertes com mulheres. Em 'Manuscrito achado num bolso', o narrador cria um jogo que tenta fazer do acaso um fator determinista: ele espera que uma mulher retribua seu sorriso pelo reflexo da janela, e que então desça na mesma estação que ele havia previamente definido como o final de seu trajeto para poder aproximar-se dela. No momento em que ele quebra essa regra e se aproxima de uma mulher que descera em outra estação, ele se sente culpado, como se o acaso o estivesse culpando por ter discordado do que havia sido determinado. O único jeito, então, é pedir a essa mulher que eles voltem a jogar o jogo juntos, na esperança de um dia resolverem descer na mesma estação. A abertura do narrador ao acaso, ao inesperado, torna-o refém, faz com que ele perca o seu livre arbítrio para o aleatório, pois só este seria capaz de decidir o seu destino. 'Pescoço de gatinho preto' também usa esses jogos de flerte no metrô como fio para contar a história de uma mulher que foi julgada como ninfomaníaca por buscar parceiros no transporte público.
O conto que mais me chamou atenção no livro foi, de longe, 'Verão', um ótimo conto de terror e suspense. Ele conta a história de um casal que precisa abrigar por uma noite a filha de um vizinho, que está viajando por uma emergência. Esse casal possui uma rotina muito precisa e muito distante um do outro, uma relação a dois pouco afetiva. A chegada da menina causa uma mudança sutil e ao mesmo tempo tensa nessa rotina, culminando no surgimento de um cavalo branco no jardim, que aterroriza o casal por medo de que ele vá entrar na casa. O medo é o que os aproxima novamente, voltando a ter relação de cuidado um para com o outro (e possivelmente de um estupro? Fiquei em dúvida sobre isso). A escrita do Cortázar, fluída em grandes parágrafos que misturam narração e diálogo, constroem a tensão desse conto de uma maneira incrível.
O Octaedro, portanto, traz oito faces desse genial escritor argentino. Em alguns momentos mais direto, em alguns momentos mais real-fantástico, Cortázar expõe toda a sua habilidade para tratar do cotidiano com uma visão cronópica que só ele era capaz.