Antonio Luiz 14/03/2010
Uma nova introdução à fantasia
A antologia da Devir foi criticada em alguns fóruns e blogs de aficcionados do gênero por concentrar-se em contos clássicos, ou que pelo menos já têm algumas décadas. Argumentou-se que, quando uma editora dos EUA lança uma nova antologia de fantasia, reúne novos contos e novos autores e não precisa incluir um Edgar Allan Poe ou Herman Melville para “legitimar-se”.
A opinião deste colunista é outra. No Brasil, ao contrário do que acontece nos países anglo-saxões, a fantasia (assim como a ficção científica) não é um gênero bem consolidado, com uma tradição significativa de escritores que o cultivem, uma crítica séria e um público significativo e estável.
A imagem da “literatura de fantasia” está muito ligada a O Senhor dos Anéis e suas imitações, aos derivados de RPGs com seus elfos, gnomos e feiticeiros, ou então a Harry Potter e suas variantes – ou seja, é tida como uma subdivisão da literatura infanto-juvenil. Caso se deseje um mercado mais amplo e maduro para o gênero, é preciso dar novos e velhos parâmetros ao público potencial e mostrar-lhe que a fantasia pode ser muito mais do que isso.
Num mercado incipiente como este, é mais fácil introduzir autores desconhecidos, ainda que bons, se vierem na companhia de um bom time de autores consagrados. A comparação adequada não seria com uma antologia de fantasia publicada nos EUA, mas, digamos, com uma antologia anglo-saxã de ficção latinoamericana, categoria que no contexto inglês e estadunidense precisa ser apresentada ao público – e de fato, "The Oxford Book of Latin American Short Stories", da Oxford Press, inclui textos de Garcilaso de la Vega, Bartolomé de las Casas, Machado de Assis, Domingo Sarmiento, Ruben Darío e Jorge Luis Borges, ao lado de autores mais contemporâneos e possivelmente menos conhecidos do público anglo-saxão, como Dalton Trevisan.
De forma análoga, em "Rumo à Fantasia", o organizador optou por incluir treze contos originados dos séculos XIX, XX e XXI, e do Brasil, Europa e América do Norte, de modo a dar uma ideia razoável da diversidade e abrangência desse gênero. A escolha nos parece acertada. Mais discutível é a escolha da capa: os contos são quase todos muito bons, mas absolutamente nenhum deles corresponde ao clima de erotismo e sensualidade que ela sugere. Uma propaganda enganosa que, a nosso ver, é desnecessária.
Em rápidos resumos, os contos são os seguintes:
"Um Habitante de Carcosa" (1886), do estadunidense Ambrose Bierce: um conto clássico de terror fantástico, que influenciou gerações de autores, incluindo H. P. Lovecraft, sobre um homem que se perde em uma (imaginária) cidade desaparecida.
"História de Maldun, o Mensageiro" (1989) do paraibano Bráulio Tavares: uma intrigante fantasia medieval ibérica (um subgênero praticamente inventado neste conto), sobre um jovem mensageiro que, ao servir a um cavaleiro misterioso, é levado a um castelo onde se fazem estranhas experiências.
"O Lugar do Mundo" (1984), do francês Daniel Fresnot: o escritor, irmão do cineasta Alain Fresnot arriscou um conto regionalista fantástico sobre repentistas do Nordeste brasileiro e deu muito certo. Um exemplo de como uma boa pesquisa permite escrever bem sobre um universo estrangeiro.
"Onde Caem os Anjos" (1996), do canadense Jean-Louis Trudel: uma fantasia poética e pungente sobre anjos que se esforçam desesperadamente por atravessar um braço de mar.
"Faerie: seguindo as sombras dos sonhos" (2007), da paulista Rosana Rios: uma velha senhora que, ao longo de sua vida, tem quatro oportunidades de trocar uma vida humana plena por outra existência em um mundo mágico, cada uma delas oferecida por um elemento.
"O Defunto" (publicado pela primeira vez, postumamente, em 1902), do português Eça de Queiroz –um conto fantástico deliciosamente irônico de um escritor realista e anticlerical: em fins do século XV, um impressionante milagre de Nossa Senhora protege um devoto que tenta pôr chifres em um marido que faz por merecê-los.
"Mensagem na Garrafa" (2009) do paulista César Silva, conhecido no meio da fantasia e ficção científica brasileiras como “Cerito”: uma fantasia de terror urbano sobre um claustrófobo que sobe de elevador em um prédio antigo e estranho e não consegue mais voltar.
"Uma Praga de Borboletas" (1980), do estadunidense Orson Scott Card: um conto severo e sombrio de um escritor de ficção científica religioso e conservador, no qual um homem se condena a tormentos eternos por seguir seus impulsos humanos em vez de aceitar incompreensíveis ordens divinas.
"O Cavalheiro da Espora de Ouro" (2009), da paulista Anna Creusa Zacharias: uma fantasia histórica sobre a morte do famoso violinista Niccolò Paganini e os esforços do filho para salvá-lo do pacto com o diabo que (segundo boatos que realmente circulavam em seu tempo) lhe teria conferido sua habilidade sobre-humana.
"A Negação" (2005), do estadunidense Bruce Sterling: um dos pais do gênero cyberpunk mostra sua versatilidade com uma ótima fantasia histórica ambientada na complexa Bósnia otomana do século XVI, que combina o folclore balcânico dos mortos-vivos com reflexões irônicas, universais e penetrantes sobre a psicologia do casamento.
"O Mapinguari" (2009), do mineiro Gian Danton (pseudônimo de Ivan Carlo Andrade de Oliveira): infelizmente, um excelente roteirista de quadrinhos produziu o conto mais fraco da coletânea. Nessa fantasia histórica, a famosa e acidentada expedição Langsdorff de 1826-1829 atravessou o interior do Brasil de São Paulo a Belém do Pará, sofre percalços ainda maiores que os da vida real ao encontrar os lendários mapinguaris, mas o conto não consegue dizer nada de interessante sobre a expedição ou essas entidades do folclore brasileiro. Duas páginas totalmente dispensáveis.
"O Bebedor de Almas" (2003), do paulista Roberto Causo, organizador da coletânea e tradutor da maior parte dos contos estrangeiros, é mais uma fantasia medieval ibérica – ou quase-medieval, pois se passa às vésperas da queda do reino de Granada, em 1492. Um guerreiro português conhecedor de artes mágicas é sequestrado por ordem do rei mouro para combater um demônio que habita os subterrâneos da cidade. Um conto complexo e envolvente, apesar das descrições sobrecarregadas.
"Os que se Afastam de Omelas" (1973), da estadunidense Ursula K. Le Guin: um conto clássico da fantasia moderna, sobre uma cidade maravilhosamente utópica, mas que oculta um terrível segredo do qual depende toda a sua felicidade. Um conto intrigante e desafiador que se presta a muitas reflexões éticas, apesar de ligeiramente prejudicado por uma tradução de Ivan Carlos Regina que deixa a desejar.