jota 16/11/2017Eurídice, mulher de verdade?Desenrolada entre as décadas de 1920 e 1960, muito na Tijuca e um pouco em Ipanema, a história de Eurídice Gusmão foi conhecida primeiro pelos alemães, depois ganhou outras traduções mundo afora e seus direitos cinematográficos foram adquiridos pelo diretor Karim Ainouz (de O Céu de Suely). Somente após seu sucesso internacional foi publicada ano passado pela Companhia das Letras, que antes a havia rejeitado.
A Vida Invisível de Eurídice Gusmão é uma narrativa que tem muita coisa para agradar às leitoras, penso. Mas os homens também podem lê-la sem receio, pois não é daqueles romances dirigidos exclusivamente ao público feminino, sem grandes pretensões artísticas e que enche as bancas de revistas e muitas prateleiras das livrarias, pelo contrário. E são de três homens, dois conhecidos escritores brasileiros e um cineasta, os elogios que encontramos na capa traseira da obra: respectivamente Ruy Castro, Alberto Mussa e Carlos Saldanha.
A história contada por Martha Batalha pode ser encarada com um melodrama, sim. Só que muito poderoso: tem drama, humor, ironia, vasto conhecimento do universo feminino, igualmente de história do Brasil, e vai muito além de um simples passatempo literário para horas ociosas. É impossível ficar indiferente frente aos personagens criados pela autora e os acontecimentos envolvendo suas vidas. Mesmo que alguns deles tenham sido baseados em situações e pessoas reais (as avós da autora, por exemplo), Batalha demonstra uma imaginação prodigiosa, narrando tudo com muita criatividade, habilidade e empenho e isso faz prender nossa atenção até o final.
Coisa de quem deve ter procedido (lido, folheado, estudado a obra literária) exatamente como faz a personagem a certa altura, no seguinte trecho: "[Eurídice] levantou-se e passeou a mão direita pelas lombadas. Dostoiévski, Tolstói, Flaubert. Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Antonio Candido. Virginia Woolf e George Eliot, Simone de Beauvoir e Jane Austen. Machado e Lima Barreto, Hemingway e Steinbeck." Toda essa imensa riqueza literária em sua estante, ao alcance da mão, da mente, da memória... Companhias para toda uma vida, de verdade ou ficcionada.
Ainda, o livro de Martha Batalha pode lembrar tanto Nelson Rodrigues (a vida nos subúrbios cariocas, como ela era), quanto dialogar com algumas personagens ou histórias de Jane Austen (especialmente as de Razão e Sensibilidade), e mesmo lembrar Gabriel García Márquez (uma história conduzindo a outra, como ocorre em Cem Anos de Solidão). E isso diz muito sobre a qualidade da literatura encontrada nessas páginas, sem dúvida.
Resta agora esperar pelo filme de Karim Ainouz, e que ele não decepcione os leitores desta bela obra.
Lido entre 13 e 16/11/2017.