spoiler visualizarDyego 23/06/2017
Quando a mensagem de uma HQ transcende suas próprias páginas
Embora seja apaixonado por quadrinhos desde criança, preciso confessar que não sou um grande conhecedor de obras nacionais. Sendo ainda mais sincero, a verdade é que estou há muito tempo afastado desse universo. Não totalmente afastado, mas ainda assim, distante o bastante para me sentir defasado em relação a esse tipo de conteúdo.
Isso começou a mudar há alguns meses, quando me deparei com YE no site da Amazon. Sabe aquele velho ditado que diz que não devemos julgar um livro pela capa? Eu ignorei. Julguei YE, mas no bom sentido. Não entrava na minha cabeça que um quadrinho com uma capa tão bonita pudesse ser menos do que incrível. Isso seria um “pecado artístico”. Um pecado não concretizado, porque Guilherme Petreca, autor e ilustrador da HQ, não permitiu.
Ye é o protagonista do quadrinho. Um jovem mudo, cuja única palavra que consegue pronunciar é seu próprio nome. Ele vive em paz em um pequeno vilarejo com seus pais, até receber o Sopro do Rei Sem Cor, uma espécie de maldição imposta pelo vilão da história. Segundo contam as lendas e os mitos, aqueles que são marcados pelo Rei devem sair em uma jornada solitária — até certo ponto —, para encontrar a cura.
Mas, curar o quê, exatamente? Já volto nessa questão.
É muito interessante a maneira com a qual Petreca desenvolve e conta a história de YE. Como o rapaz é mudo e sua busca pela cura é o ponto central da narrativa, é comum passarmos por páginas sem muitas falas. No entanto, é incrível como o autor consegue dizer muito, mesmo sem um único balão de diálogo. Ver o protagonista sozinho em uma página totalmente preta, por exemplo, é uma bela maneira de emular a solidão da jornada que, mesmo com a presença de outros personagens, é, no fim, completamente pessoal.
Agora, vou pedir um favor para você, leitor: se você chegou até esse ponto já interessado em YE e pretende adquiri-lo, pare por aqui. Leia e retome este texto depois, porque, à partir de agora, vão rolar SPOILERS que podem estragar a sua experiência. Ok?
Continuando: embora tenha uma narrativa simples e possua poucas páginas, a HQ é recheada de metáforas e simbolismos que enriquecem e dão personalidade à obra. Lembra quando disse no começo do post que voltaria para a questão da cura? Pois bem, YE é aquele tipo de obra que possui elementos (no caso, narrativos) que dão margem para diversas interpretações, e vou compartilhar a minha com vocês.
YE é uma história sobre tristeza. Aquele tipo de tristeza capaz de nos transformar, nos consumir e marcar a nossa vida — tal qual o “sopro” do vilão. Durante a jornada, muitos personagens contam ao jovem que a marca deixada pelo Rei precisa ser curada para não consumi-lo por completo. E não é exatamente isso o que ocorre na vida real? Quando algo muito ruim acontece e ficamos chateados, muitas vezes é difícil não se deixar levar por esse sentimento. Ele cresce e nos envolve quase por completo, tornando aos poucos o nosso mundinho particular um lugar escuro e vazio.
Os personagens que Ye encontra ao longo de sua jornada também reforçam esse simbolismo. É só prestarmos atenção nas funções que eles exercem na história. Por exemplo: os piratas, que raptam o protagonista em determinado momento, representam as adversidades que o rapaz deve enfrentar para chegar ao seu objetivo. É quando surgem essas adversidades que nos abalamos e alimentamos a tristeza que existe em cada um de nós.
Já o simpático palhaço que ajuda Ye a chegar ao seu destino representa a alegria e a felicidade que ainda existem em meio à escuridão. Aliás, escolha inteligentíssima de Petreca contrastar a tristeza com o circo, um lugar que transborda alegria naturalmente. Acompanhar Ye e o palhaço resistirem às investidas dos piratas e dos bandidos é como presenciar uma briga entre o que há de bom e de ruim no mundo.
Miranda, a bruxa, também é uma personagem que esconde um significado. Assim como o protagonista, ela também foi marcada pelo Rei, e desde o início da HQ é apontada como aquela que pode ensinar o jovem a se livrar da maldição. Miranda é uma senhora idosa e experiente, que representa o tipo de pessoa que nos guia em meio a momentos de dificuldade. Contudo, mesmo com ajuda, depende somente de nós mesmos enfrentar o que nos aflige, e essa é a principal mensagem de YE.
Para derrotar o Rei, o protagonista precisa deixar o medo de lado, pois esse sentimento fortalece o vilão — que nada mais é do que a representação da tristeza em si. Quando se dá conta disso, o jovem consegue derrotá-lo, e nesse momento o quadrinho ganha um significado muito interessante através do McGuffin da história: a pena deixada pelo vilão no começo da HQ.
Quando o Rei aparece no início do quadrinho para deixar sua marca no protagonista, ele aparece na forma de um corvo, e deixa para trás uma de suas penas. No final, Ye se impõe, demonstra não ter mais medo do vilão e lhe devolve a pena, que transforma a imensa criatura em um pequeno felino e em seguida desaparece.
A pena é a representação do Sopro do Rei, a marca deixada pela tristeza. Ao devolvê-la para o vilão, o protagonista demonstra estar pronto para conviver com suas inseguranças, enfrentar seus próprios medos e, assim, seguir em frente. Um ótimo paralelo com os problemas que aparecem ao longo da nossa vida — que talvez não desaparecerão por completo, mas podem (e devem!) ser combatidos para que não nos consumam por completo.
YE é uma HQ curta e simples, que utiliza os belos traços de Petreca para passar uma mensagem aos leitores que vai além de suas 174 páginas: o Rei não pode ser morto, mas pode-se aprender a lidar com ele.
site: http://www.metagene.com.br/quando-mensagem-de-uma-hq-transcende-suas-proprias-paginas/