O Lado Imóvel do Tempo

O Lado Imóvel do Tempo Matheus Arcaro




Resenhas - O Lado Imóvel do Tempo


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Fernando 13/07/2020

Leitura deliciosa e cativante
O livro conta a história de Salvador dos Santos, que passou por uma vida de decepção amorosa e carreira entediante, buscando na poesia uma forma de se eternizar - e falhando. Salvador decide apelar a um plano mais ousado: eternizar-se como um serial killer.

O tema da eternização, do viver além da vida, já é por si só bastante interessante - quem de nós não quer deixar uma marca no mundo, que permaneça quando nós não estivermos mais aqui?
Mas ainda melhor do que o tema é a abordagem que Matheus Arcaro dá em sua escrita.

O livro segue uma estrutura não-linear, assim como Tarantino faz em filmes como Cães de Aluguel ou Pulp Fiction; mas diferente do que faz o cineasta, os capítulos do Lado Imóvel do Tempo não necessitam de esforço algum para serem situados. E isto não se deve a uma data no canto da página, mas à própria narrativa, que em poucas palavras já nos situa no tempo e espaço de cada capítulo.
Os capítulos, aliás, são bastante curtos, o que ajuda a fazer deste um livro fácil e rápido de ler. Fica fácil fazer pausas quando quiser, sem perder-se na trama - não que você vá querer fazer muitas pausas, já que a leitura é muito cativante.

Por fim, para mim o ponto alto da escrita são as figuras de linguagem. Metáforas e comparações são abundantes, mas nunca desmedidas. São criativas e originais, e dão cor ao romance, sem serem pretensiosas; elas não são penduricalhos complicados no texto, mas parte integral deste, que permitem ver e sentir o que as palavras relatam.
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Krishnamurti 22/11/2016

DORES DO HOMEM, OU BREVE TRATADO DE COMO PERDER-SE A SI MESMO
“O lado imóvel do tempo”, romance de Matheus Arcaro (Editora Patuá – SP, 2016, 205p), filia-se a uma longa tradição de obras de cunho existencialista que nos legou textos imprescindíveis de elevado interesse humano. Resumidamente, a obra explora dentre outros grandes temas da existência, a busca da imortalidade. Não a da alma, mas a imortalidade de alguém que, por intermédio da literatura, aspira a deixar de si um sinal imperecível. Como o protagonista não alcança produzir obra de mínima qualidade que seja, volta este seu ansejo, que reputa como redentor de sua existência, para uma paranóia criminosa. Eis o tema obsedante do livro de Matheus Arcaro.
O autor revela-se exímio prosador na arte de, casando linguagem e inventiva, criar um texto com efeitos verdadeiramente iluminadores de uma dada personalidade doentia. Podemos identificar na narrativa, dentre outras influências literárias, ressonâncias machadianas no estilo sóbrio e contido que não renuncia, porém ao brilho do fraseado por vezes irônico, por vezes de natureza lírico-reflexiva.
Assim somos apresentados ao respeitável Salvador dos Santos, um idoso de 70 anos, sujeito pacato, comum, que um dia desejou imprimir no “lado imóvel do tempo” (a eternidade), a sua pretensiosa obra literária. Mas afinal quem é Salvador dos Santos? Em uma narrativa dinâmica muito bem construída em discurso indireto livre, vão se alternando em capítulos as revelações de seu presente (referenciado ao ano de 2002) em contraposição a sua medíocre história de vida.
É filho de pequeno comerciante de fogos de artifício e pastor protestante (religioso por fora e por dentro tarado de marca), e uma inexpressiva dona de casa aparentemente submissa, mas que em verdade, responde com um belo “corno” às infidelidades do crente. Em sua juventude Salvador tenta várias vezes o vestibular para o curso de Direito, sem sucesso. Termina funcionário concursado do Banco do Brasil, empurrado que foi pelo pai (que mexeu seus pauzinhos políticos para aprová-lo). Cupido o flecha certeiramente ao conhecer a bela Susana, o grande amor de sua vida, que por sua vez, em pouco tempo o rejeita, dentre outras razões porque o idiota entendeu de meter-se a escrever poesias e publicar livros. Literatura não dá dinheiro, é sabido, e amor sem dinheiro, quase nunca funciona.
Feitas as contas da cronologia de tal existência, damo-nos conta de que ao término da Segunda Guerra Mundial (1945), Salvador contava com 14 anos de idade, e pelo rádio toma conhecimento do julgamento de Nuremberg que julgou os crimes de guerra dos nazistas. O adolescente vai se adaptando à monstruosidade “dos outros”. Fascinado com os discursos dos advogados de defesa que ouvia, posiciona-se imaginativamente:
“Os advogados em Nuremberg, eles falam bonito na rádio. Tão inteligentes! Será que posso ser um homem desses? Senhoras e senhores do júri, não apenas meu cliente é inocente, como está sendo caluniado. Ele executou muitas pessoas? Sim, mas foi porque não tinha escolha. Meu cliente não tinha liberdade para exercer o livre-arbítrio. E por quê? Porque se não cumprisse as ordens, sua cabeça estaria separada do pescoço agora. Portanto, eu, Salvador dos Santos, atesto que este cidadão germânico está indevidamente sentado no banco dos réus!” (p.179).
Eis a formação moral de Salvador. Menino a vender fogos de artifício com o pai (metáfora fortíssima essa de fogos de artifício-fama) / religiosidade imposta e hipócrita / falência familiar / fracasso bombástico na literatura e finalmente, malogro no amor. Eis do que se fez esse homem. Um falido na luta pela vida que adota a mesma psicologia e valor moral dos exemplos que teve. Não conseguiu caminhar em direção a novas experiências preso que fica ao seu passado num círculo vicioso que o impede de mergulhar em outras realidades mais profundas da existência. Uma bolha que se mantém por décadas e décadas selada, a fermentar derrotas e um pavor, um medo terrível de não ser “ninguém”.
“Salvador, olhe bem para você. Sempre cumpriu com excelência o papel pro qual fora incumbido desde o nascimento. Mas o tempo teceu-lhe uma capa impermeável sobre o coração. De modo oposto, reduziu-lhe a fiapos os músculos, amoleceu-lhe a pele, e aproveitando-se do terreno fértil, cavou-lhe buracos por todo o espírito”. (p.54).
Conclui-se assim o ensaio para o monstro atuar. Para que “a banalidade do mal” - como não se lembrar de Hannah Arendt? - se instale definitivamente, basta uma gota. O óbito de seu animalzinho de estimação (o cachorro Pessoa que morre de velhice, vejam só), e o vislumbre de sua própria morte deflagram um processo de criminalidade homicida que tem inspiração máxima na figura de Osama Bin Laden e sua súbita notoriedade após os atentados do 11 de setembro.
Salvador, quem diria? Quem poderia desconfiar daquele pacato aposentado? Tornou-se assassino com requintes de crueldade (paralisava suas vítimas com eletrochoque, seguido de estrangulamento e crucificação). Assim ele desejou finalmente abraçar a fama e deixar sua marca no “lado imóvel do tempo”.
O psiquismo de Salvador, como o de todo homem, exprime o instinto fundamental da vida que é a insaciabilidade do desejo de evoluir. Daí a aspiração nascida do íntimo movimento da alma que clama a paixão de exprimir sua potencialidade interior, a paixão do Eu; que luta para vir à luz e revelar-se. Essa a indomável necessidade do desejo da alma. Eternidade. No terrível desequilíbrio mental de egolatria exacerbada que nele se instala, não adiantou nem mesmo o lampejo da consciência profunda – que todo homem também possui por mais doido que esteja – a gritar-lhe em um sonho quando reviu-se menino aos oito anos. O menino que um dia ele fora lhe pergunta indignado: “O que fez de mim? Ou melhor: O que Fez de nós Salvador?” (p.140).
Um tal personagem é um coitado? Uma vítima de seu tempo? Um monstro cruel? O fato doloroso é que ele não alcançou a verdade elementar que Ortega y Gasset refere, e Ronaldo Cagiano cita no prefácio do visceral romance de Matheus Arcaro: “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim”. Salvador dos Santos é também, indubitavelmente, uma síntese ampliada do homem contemporâneo. Exemplo pronto e acabado de como perder-se a si mesmo. Com ou sem a arte.
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