Ricardo 10/10/2021
É difícil dar uma ideia sobre este livro sem transcrever longos trechos dele porque seu maior encanto não está na história ou nas reflexões que ele fará disparar. Está no seu jeito de olhar e contar – com leveza e espessura (parte de um mantra que o sr. Ulme vive repetindo), com um humor às vezes doce, às vezes áspero, amargor e ternura. De quem se olha no espelho e viaja, se estranha mas se reconhece; na inércia de seus dias procura movimento na tentativa de reconstrução das memórias afetivas de seu vizinho enfermo.
Esse esforço mostra o quanto os sentidos mudam dependendo dos pontos de vista, dos pedaços que cabem a cada personagem. Podemos ser admiráveis ou deploráveis, amorosos ou calculistas , se formos afetados por alguma paixão mais positiva ou negativa. Mesmo para quem se lembra o choque de versões pode provocar muitos nós. Mas qualquer que seja o tom que a imagem do sr. Ulme vai tomando, por mais que os esboços que Kevin traça dele possam ser falhos, insuficientes, inconclusivos, a escrita de Afonso Cruz espalha uma aura de simpatia por todos os personagens e locações. É como se os filtrasse com uma luz de amizade e compreensão, que nos envolve com uma conversa que a princípio parece não querer nada, sem compromisso num café, e vai rapidamente nos comovendo por altitudes e profundezas – por causa das descobertas mas talvez mais pela forma como se vai lidar com elas ou seguir vivendo sem saber como nem em qual direção.
É um jeito de escrever muito próximo, confidente, de quem lembramos nas horas difíceis, gostamos sempre de ouvir, nos faz chorar com gosto, lavando a alma e, com igual força de propulsão, nos leva de volta a sorrir.