raposisses 16/10/2016
Perfeito para fãs de escrita rebuscada, ritmo lento, e um estudo de personagem intenso
Escolhido como o livro do ano pelo Presidente Obama, e lançado no Brasil com comparações entre o incrivelmente popular Garota Exemplar, dizer que Destinos e Fúrias chegou em minhas mãos hypado até não poder mais não é exagero. Não sou a maior fã de lançamentos que já chegam rotulados como “o próximo x” ou “mistura de y e z” pela própria editora, mas confesso que dessa vez a comparação conseguiu me fisgar; estou sempre interessada em ler sobre personagens com aparências enganosas e narradores não confiáveis. Foi o grande ponto forte de Garota Exemplar para mim, e novamente é o grande ponto forte em Destinos e Fúrias.
Quando recebi o livro, devido ao hype gigantesco, busquei de propósito resenhas de pessoas que não gostaram da história, para dar uma abaixada nas minhas expectativas. É agora que eu aproveito para reforçar a importância de resenhas, sejam elas positivas ou negativas, mas não estou fazendo isso só por jabá, ou pra puxar a sardinha pro lado de nós booktubers/bookstragammers/book bloggers; estou dizendo isso porque essas resenhas negativas realmente me ajudaram a me preparar para a leitura de Destinos e Fúrias… mas não do jeito que devem estar pensando. Essas resenhas disseram que não gostaram, ou até mesmo odiaram o livro, porque “é uma escrita cheia de floreios que tenta esconder a falta de uma história”, “é Garota Exemplar com personagens levemente mais simpáticos e onde nada acontece”, “a autora se importa mais com que a escrita seja bonita do que com a criação de um fio narrativo”. Tudo isso é verdade. E tudo isso me fez ficar mais animada ainda para ler o livro, porque todos esses pontos são coisas que adoro!
Então fica essa dica: resenhas negativas têm sim sua importância, porque ao analisar algo que não gostou, você pode estar descrevendo algo que o leitor ame. Não tenham medo de escrever resenhas sobre livros de 2 estrelas ou menos! Essas são as mais divertidas!
Mas não estou aqui para falar sobre a importância de resenhas negativas, mas sim para falar sobre o que achei de Destinos e Fúrias. Pois bem, vamos aos fatos: amei o livro.
Tudo dito pelas resenhas negativas é verdade: não há nesse livro uma “história”, um fio narrativo que puxe a leitura para a frente; Destinos e Fúrias é totalmente focado, ao invés disso, no estudo de personagens. Ele é um relato não só da vida de casal dos dois protagonistas, mas também de suas vidas em geral. O livro os segue desde o nascimento até a morte, narrando suas transformações, conflitos, e relacionamentos. Logo, se você é um leitor que prefere livros com um fio narrativo – um “plot” – forte, essa leitura talvez não seja para você. Mas se você é um leitor que, como eu, adora estudos de personagens, vá correndo adquirir uma cópia de Destinos e Fúrias, porque o que não falta nesse livro é tópicos a serem dissecados.
A sinopse diz que esse é um livro sobre um relacionamento; assim como Garota Exemplar, um casal que é aparentemente perfeito mas secretamente em conflito. Deixa a entender que é sobre os vários segredos que mantinham um do outro. Mas enquanto parte da história é, sim, sobre segredos, esse não é o foco do livro. Destinos e Fúrias é, principalmente, um história sobre duas coisas: pontos de vista, e privilégio.
O livro abre com a narração de Lotto; onde nasceu, como cresceu, e seus vinte anos casados com Mathilde. Pessoalmente, acho essa primeira metade da história a mais genial do livro. Lauren Groff consegue realizar algo extremamente difícil em sua narrativa: ao mesmo tempo em que o leitor está dentro da cabeça de Lotto, vendo o mundo por seus olhos, também conseguimos ver que sua visão da realidade não é a mesma das pessoas ao seu redor. O que parece justo para Lotto é considerado por ele justo para todos, suas dificuldades e sucessos são extrapolados para experiências universais. Lotto enxerga seu sucesso como inevitável e iminente; é o “Destino” de Destinos e Fúrias. Porém, quando a narrativa foca nos personagens ao redor de Lotto, vemos que sua visão de mundo é bastante falha.
A história de Lotto é nada menos do que um estudo sobre o privilégio que nascer homem, branco, e rico, oferece. Ele não é uma pessoa ruim, ou má – Lotto é charmoso e simpático – mas é totalmente cego em relação às experiências de outras pessoas, e as dificuldades que podem estar passando apenas por não terem nascido com as vantagens de Lotto. Pode-se dizer que Lotto é extremamente narcisista, no sentido em que vê apenas sua realidade e a toma como universal, sem prestar atenção no outro. O ponto de vista de Lotto é o ponto de vista da sociedade hegemônica, da pessoa “ideal” segundo os parâmetros da época. Lotto é o produto de uma sociedade machista, homofóbica, racista, gordofóbica; e todos esses valores são espelhados na narrativa, especialmente a questão do machismo.
O único segmento em que Lotto não é privilegiado por ser o ideal demandado pela sociedade é em relação à sua sexualidade – mas até mesmo o meio como isso é tratado por Lotto, e pelos outros personagens, é indicativo dos valores hegemônicos da sociedade: Lotto dorme tanto com mulheres quanto com homens, mas ao contrário de suas diversas conquistas femininas, as conquistas masculinas são mantidas em segredo, tanto para os outros, quanto para si mesmo. O fato de dormir com homens é sempre algo apresentado entre parenteses na narrativa, ou na forma de uma pequena frase no meio de um longo parágrafo, rapidamente mudando de assunto. E essa despistagem é muitas vezes apoiada pelos personagens secundários, os mesmos que desafiam as visões machistas, classistas, e racistas de Lotto; quando se trata de sexualidade, Lotto é sempre “o pegador”: mas apenas de garotas. Qualquer coisa além disso destruiria todas as vantagens que Lotto possui como “membro ideal da sociedade”.
Destinos e Fúrias é um livro com um protagonista não confiável, assim como Lolita, ou Dom Casmurro. A maneira que Lauren Groff explicita esse fato, porém, e a maneira que trata dos assuntos “narrador” e “ponto de vista”, é bastante original: Destinos e Fúrias é escrita em terceira pessoa, usando de uma narração rente ao personagem (ou seja, apesar de não ser escrito em primeira pessoa, a narração ainda assim não é onisciente, mas segue o ponto de vista do personagem). O narrador, porém, não se prende ao Lotto (ou à Mathilde na segunda metade do livro): apesar dos dois serem os protagonistas indiscutíveis do livro, e a maior parte da narração ser feita do seu ponto de vista, em certos momentos o narrador se desprende de Lotto/Mathilde e passa para um dos personagens secundários, para mostrar uma visão contrastante à dos protagonistas.
Um exemplo disso é quando Lotto conhece Mathilde, e imediatamente se apaixona; ele a descreve como a mulher mais bonita que já viu, claramente, segundo ele, uma modelo. Quando o ponto de vista é mudado, porém, as pessoas descrevem Mathilde não como uma beldade, mas sim como “estranha”; assim como Lotto, que em sua própria narração é dito ser muito bonito, ao olhar dos outros ele é “nada demais, mas com um charme que compensa”. Isso ocorre em diversas outras cenas, sobre diversos outros tópicos além da beleza; não apenas estabelecendo os protagonistas como não confiáveis, mas também dando mais profundidade aos personagens secundários, que na narrativa de Lotto e Mathilde são apenas caricaturas, consequência do narcisismo de ambos.
E como se essa mudança entre os narradores não bastante, Lauren Groff cria ainda mais um artifício em sua escrita: em meio à narrativa principal, enquanto estamos dentro da cabeça de Lotto ou Mathilde, há pequenas interrupções entre parenteses; uma voz universal que interrompe a narrativa tendenciosa, o verdadeiro narrador onisciente – que fala diretamente com o leitor, apontando as inconsistências dos protagonistas.
A primeira metade de Destinos e Fúrias, portanto, a metade de Lotto, é uma verdadeira obra de arte. É admirável tanto em sua construção de personagem e temática, quanto em relação à escrita em si, extremamente poética e imersiva, além de incrivelmente inovadora quando se trata de narrador. A segunda metade do livro – a parte das “Fúrias”, a metade de Mathilde – começa igualmente bem, continuando a história a partir do grande plot twist em que a metade de Lotto terminou. Porém, a autora infelizmente não consegue manter esse nível até o final.
A metade do livro de Mathilde explicita a temática feminista do livro, ao contar a história de Mathilde e em como ela difere da história de Lotto. As revelações não serão grande surpresa para leitores que leram a primeira parte com atenção; a imagem que Lotto cria em sua mente de Mathilde e a realidade são extremamente diferentes, e o objetivo dessa segunda narrativa é trazer Mathilde dos bastidores – sempre “a esposa de Lotto”, nunca “Mathilde” – para a posição de papel principal. E realmente, ela começa com muito potencial: a discussão sobre idade, principalmente, foi algo inesperado mas muito bem vindo, ao retratar uma mulher na faixa dos 40 anos como alguém vibrante e sensual, uma pessoa ainda no auge da vida; e não algo descartável por ter “passado da validade”, como a maioria das mulheres com mais de 30 anos são mostradas na mídia.
Essa história que começa com tanto potencial, porém, não leva a narrativa até o máximo que poderia. A história de Lotto foi uma história que inovou, puxou limites, e arriscou até o fim; a história de Mathilde, por comparação, parece que foi bem mais segura, ou até mesmo “conservadora”, não arriscando tanto. A grande revelação final do livro, em suas páginas finais, pareceu quase sem propósito em um livro tão focado em desafiar convenções até aquele momento. Foi esse final que me impediu de dar 5 estrelas a Destinos e Fúrias; mas não se enganem, esse ainda é um livro incrível e que com certeza recomendaria.
Apesar de ser comparado com Garota Exemplar, os dois livros realmente não tem muito em comum, além dos narradores não confiáveis e personagens femininas que não aparentam ser o que são. Garota Exemplar é um thriller, um livro com uma narrativa que te puxa para descobrir como ele irá terminar, e como os problemas e mistérios da trama serão resolvidos. Destino e Fúrias não opera sob nenhum mistério, e é o oposto de um thriller. Porém, ambos os livros se tornaram favoritos na minha lista, por algo raro que têm comum: ambos ousam desafiar as convenções sociais, e obrigam o leitor a pensar não só sobre o que está lendo, mas sobre como e em que sociedade está vivendo. Garota Exemplar ganhou pontos pelo ótimo final, mas Destinos e Fúrias ganha pontos pela escrita simplesmente maravilhosa.
No final do dia, Destinos e Fúrias realmente não será um livro para todo mundo – os que preferem histórias rápidas e com um fio narrativo forte provavelmente ficarão levemente entediados com a narrativa flutuante e aparentemente sem objetivo de Lauren Groff – mas independente do seu gosto de leitura, e independente de que se gostará do livro ou não, essa é uma leitura ao qual recomendo a pelo menos dar uma chance; porque as possibilidades, e o potencial do livro, são gigantescos.
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