Lucas 17/06/2019
Intensidade e dinamismo numa obra que apenas entretém
Daniel Defoe (1660-1731) foi um escritor e jornalista inglês de não muitas obras literárias. A mais famosa e relevante delas foi Robinson Crusoé, de 1719, que não só o tornou famoso como o fez se tornar quase que um pioneiro em livros que retratam a solidão e que influenciaram muitas memórias de carcereiros ou náufragos no passar dos séculos desde então. Robinson Crusoé relata a experiência de um único indivíduo que, após um naufrágio, luta para sua sobrevivência em uma ilha deserta. Tal premissa se mostra em inúmeras obras posteriores, como o excelente A Ilha Misteriosa (1874) do francês Jules Verne (1828-1905), que faz uma referência direta a Robinson Crusoé.
Em Moll Flanders (1722), apesar de estar longe de possuir a atmosfera de aventura do seu romance mais famoso, Defoe também recorre à premissa de descrição de um indivíduo solitário, mas dessa vez rodeado por elementos sociais da Inglaterra e de diversas cidades do Reino Unido e República da Irlanda (na época da publicação, a Irlanda era unificada e ainda não era membro do Reino Unido). Narrado em primeira pessoa pela personagem-título, trata-se, numa síntese parca e direta, de um relato de uma vida turbulenta, que passou por praticamente todos os níveis sociais do contexto histórico da época (o que é uma marca da narrativa, que acaba ilustrando bem o funcionamento da sociedade britânica do início do século XVII, já que ela se passa inteiramente nesse século).
Moll Flanders (a narrativa não esclarece se era este mesmo o nome dela) descreve a sua história desde seu nascimento, na prisão de Newgate, em Londres. Como é um livro totalmente autobiográfico e escrito em primeira pessoa, não é factível com o compromisso de não se revelarem pontos importantes da obra que se mencione os pormenores de toda a sua trajetória de vida (o que o autor faz sem cerimônias antes da obra iniciar, por meio de uma introdução que precisa ser ignorada num primeiro momento). O que pode ser dito é que se trata de um livro que está em constante ebulição: sempre há alguma coisa ocorrendo com a protagonista, seja viajando, se envolvendo com estranhos, conhecendo detalhes da sua origem, etc. Tudo isso acaba por demonstrar o caráter de descrição social da narrativa, citado anteriormente. Por meio de Moll, o leitor acaba por conhecer o funcionamento de toda a sociedade britânica da época, que já estava se desprendendo de costumes medievais e assumindo ares mais contemporâneos (aqui precisa ser destacado o caráter de vanguarda do Império Britânico em várias questões, exercendo o papel de principal nação do globo até, pelo menos, o início do século XX). Dois elementos provam isso: o judiciário, até que desenvolvido para a época, com juízes e côrtes que se envolviam diretamente em qualquer delito, independente da natureza; e o capitalismo, ainda rudimentar, mas com nuances bem presentes e determinantes aos rumos da protagonista, como contratos, propriedades e outras riquezas.
Muitas sinopses e análises resumidas colocam Moll Flanders como uma obra do gênero picaresco, que usa normalmente de sátiras (o que não ocorre aqui, pelo menos de forma direta) para descrever a existência de um indivíduo, normalmente desprovido de riquezas, mas com muita astúcia e desejo de ascender socialmente. Tal literatura ainda era influenciada especialmente pelo épico Dom Quixote (de 1605), do espanhol Miguel de Cervantes (1547-1616). A intenção da narrativa, neste caso, é montar uma história cíclica, onde o pícaro (que é o protagonista), passa por inúmeras situações que vão conduzindo-o a outras, muitas destas já vividas pelo personagem. É uma estrutura ampla de narração, que sempre acabará por deixar pontas soltas ao seu fim.
Mas a constante sensação de dinamismo que a leitura causa paga um preço elevado na definição da qualidade geral da obra. A velocidade com que os fatos vão se desenrolando é feita de maneira não convencional; a quase totalidade dos personagens não é nomeada, por exemplo, o que não traz ao leitor uma identificação imediata desses personagens pelo simples uso de substantivos. Além disso, a protagonista-narradora não consegue cativar, mesmo com seus sofrimentos e inúmeras situações cômicas, que perdem muito dessa comicidade justamente pela empatia que Moll é incapaz de despertar em inúmeros momentos. Isso tudo, em sincronia com outros fatos que não podem ser aqui revelados, acabam por fazer da narrativa, por incrível que pareça, amarrada em vários capítulos, o que provavelmente é uma prática relacionada ao teor cíclico do picaresco, definido no parágrafo anterior. A prostituição e incesto, que aparecem na história, se são desprezíveis, também são capazes de fornecer uma ideia do impacto que tais temas causaram quando foram publicados, há quase 300 anos, o que, de certo modo, acaba por engrandecer um pouco o livro dentro da literatura universal pelo caráter de coragem ao tratar desses tópicos mais escamosos.
Moll Flanders é um livro "apenas" válido como opção de entretenimento, com uma capacidade considerável de frustrar quem espera um excepcional clássico histórico. É válido, no entanto, por retratar uma série de lições morais envolvendo materialidade, matrimônio e envolvimento íntimo. Ora divertido, ora amarrado, vale ser lido para que se conheçam nuances da burguesia britânica da época e de um capitalismo ainda engatinhando como estrutura social e, dentro disso, serão percebidos pontos que persistem até hoje (apego demasiado a riquezas, por exemplo). Como é uma obra que resiste ao tempo, é também um monumento a uma época que ficou (muito) para trás, e precisa ser louvado por essa capacidade de ilustração social, mesmo que seja incapaz de emocionar, ensinar ou inábil em trazer reflexões mais profundas.