andré 19/09/2020
O Paradoxo de Gen
Essa série me deixou extremamente desconfortável, mas não pelos motivos usuais. Acho que é preciso primeiro dizer que acima de tudo é uma HQ extremamente importante, primeiro por retratar e resgatar um período histórico que é culturalmente bastante distante de nós (ocidentais) e acima de tudo por ser uma das poucas obras da cultura pop que abordam com folego esse tema (sério, no cinema a coisa mais profunda em termos de blockbuster que temos é o Pearl Harbor do Michael Bay). Da mesma forma, é uma visão não americanizada da guerra, um depoimento de quem viveu o outro lado, sem enobrecer em nada as matanças do campo de batalha. O autor quer deixar claro que não existem heróis entre militares. É um resgate dos crimes cometidos pelos EUA no Japão, que dificilmente seriam lembrados em obras estadunidenses. Mas é uma obra que sofre todos os males de ser fruto de seu tempo em toda sua essência. Ou seja, ela é a síntese da linguagem gráfica da época em toda sua estrutura e isso cria um tremendo paradoxo nos dias de hoje, no sentido que é infantil demais para um adulto e pesado demais para uma criança. Sendo mais preciso, o autor usa uma linguagem extremamente didática (e uso essa palavra não em um sentido positivo), ele claramente quer ensinar algo para o leitor e faz de tudo para transmitir seus valores, ao mesmo tempo é super expositivo, toma licenças narrativas para ilustrar acontecimentos, como, por exemplo, para explicar os sintomas de uma doença, manifesta do nada e instantaneamente todos os estágios da doença simultaneamente em um personagem saudável até um segundo antes (afinal ele quer que as crianças entendam), e ele martela sem parar seus valores, é impossível ler mais de três páginas sem encontrar expressões como: "é culpa a guerra, se não fosse a bomba e a guerra, odeio quem fez a guerra". E que fique claro que não é uma oposição aos seus ideais e mensagem que faço, mas a maneira extremamente ingênua e catequista de se expressar. E é nisso que consiste minha inquietação, pois eu concordo com os ideais e me identifico com o posicionamento do autor, mas ver essas ideias posicionadas de forma tão abertamente panfletária e indutiva, retirando do leitor qualquer exercício de crítica, me parece um contrassenso a mensagem a qual a própria obra se propõe. Basicamente, Gen não confia em seus leitores, que, por mais jovens que sejam, são extremamente subestimados aqui. O humor envelheceu mal na obra, com piadas pastelonas, que vão de socos que fazem personagens voarem e galos enormes brotar em suas cabeças (o que destona do tom trágico e documental da obra), até muitas, MAS MUITAS piadas sobre mijar e cagar nos outros, ressaltando seu foco num publico jovem. Por outro lado, a violência gráfica expressa é super pesada. Indo da mutilação física, tortura, estupro, à pessoas sendo queimadas vivas, larvas passeando por feridas e homicídio. O segundo volume do mangá foi a única HQ que precisei fechar no meio para tomar um ar na vida. O que definitivamente faz com que a obra não seja para crianças. É paradoxo que vai além da compreensão da época em que foi feita, é preciso fazer concessões na leitura e por mais boa vontade que você tenha, em algum momento isso vai ser difícil. O autor também tem muita boa vontade no que diz respeito ao ser humano. Totalmente pacifista, o autor coloca toda culpa da maldade não no homem, mas nos governantes e na guerra. Sem a guerra, sem a bomba, todos os japoneses teriam sido ótimas pessoas. Essa visão, por sua vez, é tão ingênua quanto perigosa. Por exemplo: no mangá Gen perde uma irmã bebe após está ter sido sequestrada e ter sofrido maus cuidados, no entanto, nem os sequestradores, nem o pouco cuidado demonstrado com o bebe são vistos e forma negativa, ao contrário, o mangá ressalta que eles são boas pessoas sofrendo e só fizeram o que fizeram porque perderam tudo na bomba. E essa mentalidade se repete: um tio rouba o dinheiro dos sobrinhos que ficaram órfãos com a bomba, causa a morte da sobrinha e manda o sobrinho para um reformatório, e ele não é ruim, foi a guerra quem endureceu seu coração; em determinado ponto da narrativa o irmão de Gen o abandona para casar, deixando o irmão caçula morando na rua, e não existe nada demais nisso, é a vida por causa da bomba, o irmão mais velho não tem nenhum problema de caráter. A boa vontade por trás dessas ideias flerta com uma ingenuidade capaz de causar tanto mal quanto a própria maldade. Mas, no fim, o saldo foi positivo, é um mangá que todos deveriam ler. Apenas é importante não desligar o senso crítico, por mais validas que sejam as ideias do autor e por mais importante que seja esse registro.