spoiler visualizarTainá Dash 25/06/2020
Aprendizado e paixão pelo mundo, pelo cinema
O livro reúne dois livros de André Bazin que são inéditos em português, além de algumas explicações e uma entrevista ótima!
Abaixo, segue o que aprendi com o livro:
Quando André Bazin fala sobre realismo, não está defendendo a passividade do diretor perante ao maquinário. A teoria baziniana aponta que, quanto menos real é um filme, mais falho ele o é, pois o cinema é a arte mais realista dentre as artes existentes. Conforme se usa uma câmera, capta-se o movimento, o devir, a realidade, a criação. Mesmo quando tudo em uma tela tenta criar o inexistente, a pessoa que encena ali, marca o tempo e a realidade. Não é possível fugir da realidade no cinema, por isso os filmes realistas são vistos como melhores para Bazin. O realismo cinematográfico permite a infinitude de um filme: todos os filmes são datados, porém os que menos o são, são os mais realistas (os filmes podem permanecer vivos sem envelhecer ao se sustentar a ?submissão ao realismo?).
Entretanto, de acordo com Bazin, ?o interesse em restituir o real só se justifica para fazê-lo significar mais?. Aí que entra o diretor como autor. Aí que entra o público que pensa além de se entreter. Aí está a chave para as preferências do teórico. Para Bazin, quanto menos cortes, mais real é uma cena, podendo-se modificar os enquadramentos com movimentos de câmera (principalmente panorâmicas). Assim, existem em cena coisas reveladas e escondidas, pois há continuidade do espaço-tempo, mas nem tudo é visto dependendo de qual enquadramento é usado (cabe ao diretor escolher o que mostra ou não mostra - o que não aparece em tela também significa muito em um filme). Ele prefere o plano sequência aos cortes que pulam tempo, poucos artifícios de montagem e ?profundidade de campo lateral?, a qual permite uma visão ampla e une o centro de interesse com o contexto humano e físico em que ele está inserido.
O crítico era apaixonado pelo mundo em que vivemos, para ele ?O cinema era um novo instrumento para observar e decifrar a procura por comunhão do espírito e do corpo baseada nas mensagens inscritas na terra, era uma ferramenta que ajuda na contemplação das verdades da natureza?, logo, explica-se a ideia de cinema como captação do sagrado naquilo que é filmado, no real. Visa, enfim, a conjunção entre realismo técnico, dado pelo automatismo, e realismo estético: ?Bazin viu na arte (no cinema) a transcendência ? através do estilo ? da consciência sobre as circunstâncias?. Ao descrever uma cena em que o real aparece em tela, Bazin se expressa poeticamente, pois a importância do realismo para ele é essa: trazer a beleza do real, da natureza. Inclusive, ele se encantava com como a realidade filmada podia interferir no registro dela própria, por exemplo quando a chuva faz as lentes não conseguirem captar direito o que acontece num determinado local.
Apesar das próprias preferências, também segundo Bazin, existem diversas maneiras de chegar ao real no cinema, ele acredita no ?possível e o impossível realismo?. O livro Jean Renoir deixa isso óbvio, pois acompanha diversos caminhos escolhidos pelo cineasta - filho de pintor que traz a genialidade do pai para os filmes e também se aproxima de romancistas no fazer cinema - e, apesar das mudanças, somando a elas escolhas menos realistas de quando em vez, sempre há elogios de Bazin ao diretor - que era o preferido do teórico. O que Bazin mais gostava em Renoir eram as constantes contradições, a eterna insatisfação, a busca incessante por renovações e a facilidade para se adequar às inovações técnicas. O trecho a seguir resume bem o que se tira desse livro:
?É, em última análise, na maneira particular que tem o cineasta de fazer significar a realidade que reside o princípio de seu estilo e, ousarei dizer, sua hierarquia. Entendam que essa arte, pretensamente a mais concreta de todas, é de fato a mais facilmente abstrata. Os piores filmes para olhar de perto não são compostos senão de símbolos, de signos, de convenções, de hieróglifos dramáticos, morais e afetivos. E é o que existe de justo num certo senso comum crítico que faz do ?realismo? um critério de qualidade. O que nomeamos correntemente de realismo não tem tanto sentido absoluto e claro, e ele não designa mais um movimento, uma tendência em direção à restituição fiel da realidade ? em que também a apologia do ?realismo? no fundo não significa estritamente nada (senão de negativo e por oposição), pois existem mil maneiras de ir em direção ao real, e este movimento não tem valor senão em razão do que ele cria, quer dizer, do suplemento de sentido e por consequência de abstração que resulta dele. O bom cinema é necessariamente de uma maneira ou de outra mais realista que o mau. Mas esta condição não é suficiente, pois não existe interesse em melhor restituir o real senão para fazê-lo significar mais. É neste paradoxo que reside o progresso no cinema.?
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Outra forma de entender como o realismo defendido por Bazin não era engessado é acompanhando a Nouvelle Vague, afinal, ele foi como a força motriz do movimento: pensou a ideia de câmera-caneta, câmera que escreve; tinha crença na crítica cinematográfica como um gênero literário, apoiando ?cineastas para os quais a cinemateca e a crítica foram determinantes: eis aí uma descrição exata do que veio a ser a Nouvelle Vague?. Dentro da Nouvelle Vague existiam diversos cineastas, cada um com o próprio modo de fazer filmes realistas - ficando mais evidente a distinção entre Cahiers du Cinéma e Rive Gauche -, enquanto Bazin seria a união de tudo. Ele era mais próximo política e ideologicamente dos cineastas da Rive Gauche, mas, cinematograficamente, estava mais aproximado dos cineastas dos Cahiers. De qualquer forma, se o movimento francês é como um resultado do que defendia Bazin e, dentro dele, o real tinha diversas interpretações e resultados, fica elucidada a distinção entre realismo e uma fórmula de fazer filme.
Finalmente, afastam-se as conclusões fáceis de outros teóricos sobre André Bazin. Não existia uma defesa ingênua de realismo sem interferência humana! Para Bazin, as ?interferências? eram o que constituíam e construíam o realismo, afinal, tanto o real quanto o imaginário pertencem ao artista nas artes. Ou seja, o realismo é uma construção, é estética, principalmente no cinema: o cinema é essencialmente uma arte impura, a qual substitui a mão humana pelo maquinário e, exatamente por isso, o cinema tem a própria linguagem e a própria estética. O cinema é diferente da pintura, da escrita, de toda arte anterior: ?pela primeira vez, entre o objeto inicial e sua representação nada se interpõe a não ser um outro objeto?. Também não existia a intenção de se apreender toda a realidade! Diferente do que muitos acreditam, Bazin afirma que o real é impossível e, ao mesmo tempo, existente, por isso a busca incessante por encontrá-lo e a beleza em trazê-lo nos filmes, principalmente quando ele não está em tela - as lacunas de um filme refletem a realidade, pois tentam explicá-la mas mantêm seus mistérios.
Então, o defendido por Bazin dá ênfase na invenção que envolve os filmes realistas: é sobre misturar fatos da imaginação e observações da realidade, resgatando-se acontecimentos significativos e não convencionais; não se trata de confundir realidade e representação, signo e referente: ?o cinema é uma linguagem?. Considera que o cinema tem o dever de dar atenção ao mundo, já que ele consegue fazer isso, é um pensamento franciscano, no qual tudo é importante, logo, tudo é cinematográfico. Contudo, a teoria de Bazin é importante por diversos outros motivos: foi o primeiro teórico que pensou o cinema globalizado, que separou o cinema em categorias, que analisou o passado para prever e construir o futuro, através dele que existiram outros teóricos do cinema. Pensou o cinema através dos filmes, não usou algo externo ao cinema para analisar o cinema (por exemplo, a filosofia). Além de teorizar questões que ainda hoje são atuais, Bazin o fazia de forma acessível, separando o pensamento que criava da elite intelectual, do academicismo: é possível entender o que ele defende e fala sem um conhecimento e estudo prévio.
Bazin falava com gente de todo tipo, escrevia em revistas e jornais de todos os tipos, o importante para ele era avançar na história e construir um futuro para o cinema: ajudar a pensar era o mais importante - tudo foi embasado pela guerra da resistência em oposição à Alemanha nazista, nessa época, uniam-se todas as pessoas e as crenças contra o Fascismo. O teórico encadeou atividades e realizações que influenciaram, a princípio, o cinema francês e, aos poucos, o cinema mundial: fez cineclubes; escreveu para diversas revistas e públicos; abriu fábricas e sindicatos; originou a Cahiers du Cinéma; questionou a ideia de que a civilização vinha apenas da palavra escrita, legitimando outros tipos de cultura; lutou por um cinema de qualidade e ao mesmo tempo por um cinema ?popular?; defendeu o ensino do cinema nas escolas repetidamente e intercedeu pela abertura de maiores e melhores cinematecas. Por isso é fácil ler afirmações como a seguinte: ?A construção de uma plateia para um cinema mais inteligente, na França e no mundo inteiro, teve em André Bazin um dos seus mais dedicados operários e teóricos?.
O livro O cinema da ocupação e da resistência deixa o lado ativista do cinema de André Bazin mais explícito, porque ele reúne artigos nos quais o autor aborda mais a fundo o assunto. Nele descobrimos, por exemplo, que Bazin discorda de que o cinema não deve ser interessante para estudos e debates - muitos o viam como menor do que ?uma tradição livresca e universitária? por ser uma arte que ?não pode se dirigir senão às massas?. O teórico também acredita nos cineclubes como motores para mais estudo sobre o cinema e para possíveis melhorias, mas ao mesmo tempo como gerador de problemas: ?eles rapidamente se fecharam de novo num esteticismo sutil, muito interessante em si mesmo, mas que arriscava a comprometer o cinema com experiências estranhas a suas leis sociológicas fundamentais?. Ademais, questiona como o cinema é quem inicia os progressos técnicos e parece preso a eles, tendo medo de que ele caia na decadência e levantando a disputa entre cinema como arte e cinema como indústria: apesar de o cinema ser cada vez mais consumido, cada vez menos se conhece a história dele, pois o passado não é conservado, não se sabe manter o que é feito tecnicamente. Temia que apenas por serem contemporâneos ao nascimento do cinema, ignorassem a importância dele.
Enfim, seja dando dicas de quais filmes não se deve perder tempo assistindo, comparando o estudo do cinema nos diferentes países, percebendo o que ocupa a tela do cinema francês ou analisando a importância do Festival de Cannes, o livro mostra as preocupações e as ações de Bazin para o cinema. De acordo com o autor, o cinema chega ao nível de grandes obras de arte ao mesmo tempo que não foge das condições sociais em que está inserido: ?A estética cinematográfica será social ou o cinema não terá uma estética?. Ou seja, o consumidor do cinema não é vital para a criação cinematográfica, mas essa criação está sempre dentro das ?condições econômicas e sociais que impõem ao cinema sua vocação popular?. É uma arte popular por chegar a tantas pessoas, mas não depende dessas pessoas para evoluir; isso não afasta o cinema do povo, pelo contrário, pois existe ?um acordo profundo da obra com os homens de nosso tempo? (seja qual tempo for, porque o cinema sempre passa o tempo em que ele está sendo feito): o progresso estético e técnico do cinema está na sua produção, não na recepção de público, portanto, o futuro do cinema tem muito mais a ver com políticas culturais e com pensamentos sobre a manutenção da produção do que com como público o recebe, é sobre criar, antes de qualquer coisa. E, dessa maneira, volta-se ao realismo:
?Exprimir a sociedade é primeiramente representá-la tomando cuidado com a exatidão material e a autenticidade moral. Esta não é uma apologia do realismo, pois o cinema de evasão e de fantasia ele próprio tem todo interesse em continuar na sã corrente do real. [...] Os moralistas deveriam perceber que o principal perigo do cinema reside talvez na mitologia demagógica em que a sociedade se crê representada e à qual ela acaba por se conformar inconscientemente. Nós acabamos por nos habituar a esta falsificação a ponto de termos dificuldade em imaginar a qual revolução no estilo do cenário e na concepção da encenação levaria essa vontade de exatidão. [...] O destino de uma arte popular é inseparável do destino social, mas ela deve contribuir para a tomada de consciência deste destino em lugar de muitas vezes nos desviar deste caminho. Temos aqui um problema de espiritualidade social transcendente a toda necessidade de propaganda política particular. [...] Seria fácil mostrar qual dialética inelutável liga todas as grandes obras dramáticas e cinematográficas à sociedade que elas exprimem sempre, mesmo quando estas não se reconhecem nelas de imediato.?
Em Bazin, a produção cinematográfica vem primeiro. E para se produzir cinema, tem-se de passar o mundo. O mundo é belo mesmo quando ele é feio, é preciso mostrar essa feiura, é preciso mostrar tudo! ?Para Bazin, tudo merece nossa atenção, e se é bem filmado, tudo merece nosso amor?.