Jefferson Alberto Ferreira 31/05/2016Sobre memórias e despedidas...Ler esse conto é, antes de tudo, poder viajar pela serra de Minas Gerais, bebericar um doce vinho de jabuticaba, sentir o cheiro de mato, sentar num móvel de ferro ou nos degraus de uma escada para ouvir uma prosa, e até mesmo avistar os desengonçados pássaros jacus ciscando no quintal. Nessas pequenas coisas já se consegue perceber o esmero de Janayna Pin em mais essa obra ambientada no universo da Galeria Creta.
“Sombras”, um conto curto de 50 páginas, relata os últimos momentos de Domenico Trovatelli, o lobisomem mais velho do mundo. Nico reúne alguns de seus amigos mais chegados para relembrar alguns “causos” de sua longa história, enquanto espera por sua derradeira transformação.
"— Esta maldição é realmente terrível. Ah é, é sim. — Riu, amargo, dando tapinhas no braço de Bolinha para acalmá-lo. — No entanto, quem consegue aguentá-la por uma vida inteira é agraciado com este maravilhoso poder de saber exatamente quando vai partir. Não vejo mal em falar sobre a morte. Antever sua chegada faz sumir todo o medo, capisce? Como se a morte fosse uma velha amiga. — Fez um silêncio pensativo e murmurou para si mesmo: — Alguém já disse isso, não?" (Singela homenagem à JK Rowling e seu “Conto dos Três Irmãos”?)
A maior parte do conto é ocupada pelas reminiscências de Nico, abrangendo desde seus amores e sua “contaminação” com a licantropia, até (e principalmente) sua atuação como sombra e consciência de um lendário rei e herói medieval!
Para os já saudosos de Lobo de Rua há o bônus da presença de Tito, o alfa da alcateia de São Paulo.
(Atenção, aqui talvez alguém ache que tenha um leve spoiler sobre Lobo de Rua)
[E, como se já não tivéssemos chorado bastante em “Lobo”, sobra para o leitor uma lembrança amarga, ainda que indireta, a um jovem lobo de rua, membro da efêmera 13ª alcateia de Tito. :~(
"— Essa foi só a sua primeira alcateia. Eu mesmo, que me transformei há pouco, já passei por doze. — Ele franziu as sobrancelhas, como se pensasse melhor. — Ou melhor, treze.
— Treze? — questionou Cândido, curioso.
— É que a última fechou cedo demais — murmurou Tito. — Muito cedo."]
Os diálogos são tocantes e críveis (dentro do universo fantástico criado), nos fazendo sentir parte desse bate-papo entre antigos amigos. E são esses diálogos que nos fazem conhecer um pouco de cada personagem, e algumas frases soltas são verdadeiros ganchos para futuras histórias (assim espero).
O grupo reunido por Nico, além de Tito, abarca personagens diversos e interessantes. Embora não tenha sido a intenção da autora aprofundá-los, consegui imaginar diversos outros contos protagonizados pelos lobisomens Bolinha, Florian, Cândido e Fairburn. Além de ter ficado bastante curioso para conhecer mais do relacionamento de uma humana (Zilda) e um lobisomem (Fairburn). Ah, sem esquecer da somente mencionada Convenção de Plovdiv, assinada pelas alcateias de todo o mundo, que também merece um conto à parte.
A narração é para mim praticamente um personagem do conto. A narrativa da Janayna é poética, mesmo quando mostra de maneira cru a selvageria incontrolável pós-transformação. E essa mesma narrativa, que já vi ser criticada por ser “limpa e certinha demais para uma fantasia urbana”, para mim é completamente cativante.
Sim, eu senti falta de conhecer mais a respeito de Nico e de cada um dos outros personagens. Senti falta de memórias do velho lobo em outras fases de sua vida. Mas o conto cumpre perfeitamente o que se propõe, que é ser um conto sobre memórias e despedidas, e deixa um “gostinho de quero mais”. Esse “sentir falta” vem mais da vontade de ver esse conto transformado em uma novela ou romance do que de uma falha da obra. Cada vez mais nos sentimos familiares ao universo criado pela Janayna. Parece mesmo que #SomosTodosLobosDeRua. E que venha a Galeria Creta!
Nota: 4,5/5,0