jhdep 27/03/2023
A armadilha metapoética de Ana C.
A advertência de seu parceiro de geração Cacaso à época - "É muito bonito, mas não se entende (...) o leitor está excluído" - parece sintetizar o paradigma que foram Ana C. e sua obra na história da literatura. Identificada como pertencente a geração mimeógrafo pelo espírito contracultural, o processo artesanal de produção e distribuição de seus poemas e a relação íntima com seus colegas, a realidade é que Ana se sobressaiu a qualquer tentativa de encaixe em um movimento literário específico pela sua originalidade, que não encontra par em nenhum outro poeta brasileiro.
Avessa ao poema-minuto, marca de sua geração, nunca deixou de estabelecer contato com as tradições literárias brasileiras e inglesas, principalmente, frutos de sua convivência em um ambiente familiar envolvido com trabalho intelectual e sua vida acadêmica posterior. Portanto, a erudição talvez tenha sido a principal marca que a destacou; porém, talvez a mais interessante e intrigante sejam os recursos da intertextualidade e da intergenericidade que trabalhou desde seus primeiros escritos.
O lugar entre o confessional e a ficção, a autobiografia e a invenção, o dito e o não-dito são fronteiras que sempre fez questão de ultrapassar, entendendo a importância de não dar de bandeja para o leitor uma compreensão simplista e mastigada das coisas. E foi tão exitosa que os próprios críticos literários caíram em sua armadilha: recorrentemente a chamam de "autobiográfica", "confessional", parecendo não notarem sua intenção contestadora no que tange aos conceitos de autoridade e veracidade na escritura.
Já o que mais poderia aproximá-la de seus colegas de geração talvez seja as contantes menções a produtos da cultura pop, algo que irá florescer e perdurar na década de 80, na obra contística de Caio F. - seu grande amigo - ou na poesia de Ítalo Moriconi, outro grande conhecido da poeta.
Portanto, sugiro que, para que a leitura de 'a teus pés' seja mais confortável e prazerosa aos futuros leitores, tenham em mente não só o que foi dito até aqui, mas também outra particularidade: os usos metafóricos utilizados pela autora brincam com a relação entre autor e leitor e com o próprio processo do fazer poético. De resto, não procure por significados na superfície. No fim e a fundo, há apenas carro em fogo pelos ares, conversa de senhoras anônimas, um tea for two quente e amargo.