annalismv 11/01/2012
“Nada neste país é o que parece”
Edney Silvestre é um mestre na arte de reunir palavras. Suas frases são dotadas de tanta beleza que dá vontade até de saboreá-las em voz alta. Palavra por palavra que, como numa corrente, unem-se formando elos graciosamente entrelaçados. Foi com essas percepções que fechei o romance “Se eu fechar os olhos agora”, após horas de uma leitura extremamente prazerosa.
“Se eu fechar os olhos agora, ainda posso sentir o sangue dela grudado nos meus dedos. E era assim: grudava nos meus dedos como tinha grudado nos cabelos louros dela, na testa alta, nas sobrancelhas arqueadas e nos cílios negros, nas pálpebras, na face, no pescoço, nos braços, na blusa branca rasgada e nos botões que não tinham sido arrancados, no sutiã cortado ao meio, no seio direito, na ponta do seio direito.”
É dessa maneira que se inicia a saga de dois garotos de 12 anos, Paulo e Eduardo, compelidos a deixar de lado a inocência e a doçura do universo infantil para penetrar no complexo, corrupto e, por vezes, cruel ambiente adulto.
Após serem expulsos da aula, os dois sobem em suas bicicletas e partem para o seu refúgio particular. Trata-se de um lugar afastado, com um lago onde costumam se banhar. Nesse dia, porém, à beira das águas estende-se o cadáver de uma bela mulher. Impressionados com a mutilação de seu corpo e dotados de um espírito a la Hercule Poirot, os amigos decidem então investigar o seu assassinato.
Considerados suspeitos, os dois têm de lidar com a desconfiança e com a impaciência da polícia, que não demonstra a menor vontade de dar um rumo ao caso. Mas a dupla ganha um reforço quando une-se às buscas o misterioso Ubiratan (velho morador de um asilo que havia sido vítima das torturas e da repressão do governo de Getúlio Vargas). Com a sua entrada, a história ganha um novo ritmo, mostrando que o que parecia ser um crime sem maior importância liga-se a uma enorme rede de falcatruas, corrupção e impunidade – o que é reafirmado pelo aviso de Ubiratan: “Nada neste país é o que parece”.
Arquitetada de maneira engenhosa, a obra do jornalista-escritor (que, além de repórter dos jornais da TV Globo, também apresenta o programa Espaço Aberto Literatura, na GNT) consegue aliar uma linguagem simples a um estilo requintado. Seus personagens são tão bem construídos que não é raro pensarmos neles como pessoas de nosso convívio.
Além disso, a exatidão do seu trabalho jornalístico também lhe ajudou a recriar com fidelidade a atmosfera vivida pelo Brasil e pelo mundo no início da década de 1960. A começar pela data escolhida para abrir a trama: 12 de abril de 1961 – mesmo dia em que, a bordo da nave Vostok I, o russo Iuri Gagárin chegou ao espaço.
A corrupção brasileira também foi pincelada durante o andamento da história, ao lado da impunidade e da ineficiência de uma polícia que se esquece de sua função para se sujeitar aos (inescrupulosos) desejos dos detentores do poder. Os resquícios da ditadura de Getúlio Vargas e a divisão ideológica do mundo entre comunistas e capitalistas, tão característica da Guerra Fria, também marcam presença na trama.
Tanto esmero e tamanha competência não passaram despercebidos pela crítica literária. O livro levou o Prêmio Jabuti na Categoria Melhor Romance de 2010 e também foi escolhido como Melhor Livro de Autor Estreante no Prêmio São Paulo de Literatura de 2010.
Ao final da leitura, além de atestar o talento inquestionável de Edney Silvestre, é possível refletir sobre a sujeira e a indecência encravadas em nosso território, no qual infelizmente quem geralmente manda na (in)justiça são os donos do dinheiro e do poder.
*Texto publicado no blog Marcador de Páginas (marcadordepaginas.wordpress.com)