Coruja 13/04/2021Mais uma releitura! Então, temos aqui basicamente duas histórias. Na primeira parte, Watson e Holmes se conhecem e se tornam colegas dividindo aposentos em Baker Street. Na segunda, Doyle permite ao assassino dar suas razões e justificar seu crime ao revelar o passado de suas vítimas.
Watson, que voltou recentemente do Afeganistão, não tem muito para fazer além de conjecturar sobre tudo o que há de estranho em seu novo conhecido, até que uma visita de detetives da Scotland Yard lhe dá a oportunidade de desvendar quem é, afinal, Sherlock Holmes. Convidado a acompanhar o outro homem, Watson dá então seu testemunho sobre os métodos detetivescos de Holmes, num caso que envolve dois assassinatos misteriosos. Watson se impressiona, Holmes se pavoneia, detetives profissionais são ridicularizados, novos métodos científicos de investigação são utilizados, uma vingança é consumada e uma amizade para a vida toda começa ali.
Em meu primeiro contato com o livro, queria saber o que tinha acontecido, quem era o assassino, porque ele matara, como ele cometera o crime. Notem o uso do pretérito: tempos verbais são importantes em romance policial porque você está sempre preocupado em saber o que aconteceu, não o que acontecerá. Enfim, era o suspense que me interessava, a solução do mistério.
Na releitura, minha preocupação foi bem outra: afinal as ações de Jefferson Hope se traduzem num caso de justiça ou vingança? Se o sistema falhou com Hope, então há justificativa para ele se arvorar juiz e executor? Aliás, considerando a genialidade de Sherlock e sua capacidade para farejar criminosos, estaria ele mesmo acima da lei? Especialmente quando esses criminosos estão eles mesmos acima do alcance da justiça comum?
Não são questões tão fáceis de resolver. Os homens que Hope matou não eram, de forma alguma, inocentes. E eles não apenas se safaram de seus crimes como lucraram com isso. Tornaram-se ricos, estavam em posições de poder. Nunca se arrependeram de suas ações. Quanto a Hope, que consumiu o resto de sua vida atrás de vingança, o que mais ele tinha a perder considerando a bomba relógio que tinha no peito?
Essa situação não aparece apenas em Um Estudo em Vermelho. Em contos como Charles Augustus Milverton e Abbey Grange, Holmes silencia acusações e até destrói evidências incriminatórias por acreditar que isso é o mais justo, o mais correto à ocasião. A certa altura de As Cinco Sementes de Laranja ele diz de si mesmo “sou uma espécie de última corte de apelação”. Levando assim em conta as palavras que Doyle coloca na boca do detetive, não posso deixar de pensar que o fazer justiça com as próprias mãos era algo com que o autor concordava.
É fácil, na teoria, se dizer a favor da lei. O velho ditado do “olho por olho e o mundo terminará cego” - é preciso acreditar na justiça para que não mergulhemos no caos social. Até sermos diretamente atingidos. Suponhamos estar numa situação parecida com a de Hope: uma pessoa que você ama (seu pai, seu filho, seu irmão) é assassinada e, por algum motivo - a morosidade do processo, a influência do vilão com pessoas no poder, negligência na investigação -, o assassino fica livre. A justiça te foi negada. Não há mais para quem recorrer, o vilão saiu ileso sem um pai nosso de penitência, não existe nada a fazer além de se conformar.
Em tempos modernos talvez seja possível utilizar as redes sociais para gritar a reprovação social e causar algum inconveniente ao culpado. Mas essa reprovação seria passageira, porque a memória coletiva é fraca e logo se deixa impressionar pelo próximo escândalo. E, se seguirmos o roteiro de Um Estudo em Vermelho, os vilões podem simplesmente fazer as malas e recomeçarem em outro lugar no qual ninguém os reconheça.
O sentimento de revolta, numa situação dessas, é a coisa mais natural do mundo. O quanto se caminha entre a revolta e o agir vingativo, são outros quinhentos. Não podemos negar que a justiça é falha e não posso afirmar que, na mesma situação, sou uma pessoa suficientemente altruísta para deixar passar tudo em brancas nuvens. A verdade é que Doyle me força a refletir e, colocando-me no lugar de Hope, tendo a oportunidade da desforra e nada mais a perder nessa vida, não posso condená-lo.
(essa resenha faz parte de um ensaio maior, disponível no blog. Não trouxe o ensaio inteiro porque era bem grande e nem todo ele tinha a ver com o livro, mas, a quem interessar mais conjecturas Holmes, justiça, vingança e porque ler romances policiais, o link está logo abaixo).
site:
https://owlsroof.blogspot.com/2021/04/um-estudo-em-vermelho-revisitando-o.html