michl 17/01/2021
Notas sobre uma tragédia movediça
Uma mansão. Uma aleia. Um pântano.
Garras verdes-musgo, preto e cinza formam abóbadas de melancolia, que se fincam nos corações daqueles que habitam o pequeno círculo de Devonshire, onde se encontra a secular mansão dos Baskerville.
Verde e cinza. O tempo escorre na janela e não há gentileza, exceto nos passos que se esgueiram, furtivos, rumando para onde é sombra. Todo lugar é sombra. Aqui é sombra também. Não há nada que distingua os passos do homem, das pegadas de um cão monstruoso. O homem também é monstruoso e no olho vermelho do cão, há um homem, vendo a vida explodir no peito ? e caindo, por fim, em um suave leito de folhas, flores e lama. O homem está tão em paz que não se atreve a mover. Não se deixe enganar por sua face disforme de dor.
É que ninguém, nenhum detetive, nenhuma ternura hispânica, em olhos castanhos femininos, nenhuma borboleta rara, nem doutor, nem fantasma, nem esposa, nem marido ? ninguém nunca há de nos salvar.
Eu ouço e eu só ouço. Não vejo nada... mas só por isso não existe?
Esse é o lugar onde os cavalos vem para morrer e os peões vem para cair. Tudo seria mais fácil, se você, lendo, lembrasse que enquanto se morre, um salgueiro em algum lugar do pântano, está chorando. Um cão solitário lhe faz coro. Isso é o mais próximo do que, por aqui, se pode chamar de paz: um silêncio que morre em silêncio.
Essa introdução longa acompanha uma nota bastante breve dessa vez. Sem dúvidas é o melhor romance das aventuras de Sherlock Holmes e dr. Watson que li até agora. Para ser justa, convenhamos que a melhor história de Sherlock é protagonizada, em boa parte do tempo, (digamos, por 70% do livro) justamente pelo dr. Watson. Foi muito prazeroso acompanhar as investigações de uma pessoa sem grandes habilidades cognitivas (opa), mas apenas um amigo leal, com a melhor das intenções, cumprindo ordens e buscando a cobiçada aprovação do nosso amado S.H.
Em termos narrativos, gosto de como são bem dosados o esquema de relato, com cartas/relatórios e trechos do diário de Watson, o que dinamiza o formato da história, ao passo que, no plano dos acontecimentos, ainda que um ou outro possam ser previstos, no geral, são todos muito instigantes e até surpreendentes.
Fora que boa parte do livro trata de uma experiência sensorial, que tentei reproduzir muito porcamente na minha introdução, recuperando fragmentos do que vim lendo na última semana. A atmosfera de melancolia é pesada, espaço perfeito para a corrupção dos afetos, para chuvas torrenciais, para o escuro, para rochas que brilham afiadas como estacas de ossos brancos, para orvalho misturado a sangue sobre o limo ancestral. As cores, os cheiros, o visual descrito tem um peso muito grande neste romance e os sentimentos dos personagens são habilmente coloridos pela relação mútua entre homem e natureza.
É difícil viver sabendo que se está amaldiçoado. Mais grave ainda é notar o impacto disso nas vidas daqueles que tampouco carregam o sobrenome Baskerville, mas que estão igualmente amaldiçoados e enredados na mesma trama atroz. Achei muito bem pensado e estou convicta de que essa história faz justiça a fama que possui e as marcas que deixou para a cultura pop.
Com o prato cheio que foi este romance, me encaminho, em breve, para os três últimos livros acerca do detetive da Baker Street 221B. A próxima leitura deve ser o romance "O Vale do Medo" ? e medo tenho eu de chegar ao fim dos meus divertimentos com as criaturas de Sir Arthur Conan Doyle!