Rodrigo1001 26/03/2023
Existir, ainda que não totalmente (Sem Spoilers)
Título: Corações Cicatrizados
Título original: Inimi Cicatrizate
Autor: Max Blecher
Editora: Carambaia
Número de páginas: 232
Em sua curta vida completamente definida e confinada por uma doença chamada Mal de Pott (ou tuberculose óssea, como é comumente conhecida), o escritor romeno Max Blecher (1909-1938) produziu dois livros amplamente consagrados, uma coleção de poesia e inúmeras prosas e traduções.
Convenhamos que, para um jovem que passou a última década de seus curtos 28 anos em vários sanatórios, deitado e com o torso completamente imobilizado em gesso, é uma conquista e tanto.
Assim, a publicação, em 2016, da nova tradução de Corações Cicatrizados diretamente do Romeno para o Português pelas mãos de Fernando Klabin via Editora Carambaia trouxe a visão singular e dolorosa de Blecher para um público entusiasmado; inclusive eu!
Permitam-me começar, portanto, falando sobre a edição em si.
Como bem definido pela própria Editora, o projeto gráfico do livro inspirou-se no enredo do romance para estimular no leitor algumas das sensações descritas pelo autor. A capa é estampada com os detalhes da trama de uma atadura, base para o gesso no qual é envolvido o personagem principal durante boa parte da história. Envolta em tecido, capa, contracapa e lombada trazem ao toque dos dedos a sensação de gesso na pele. Além disso, a orientação do texto também acompanha o protagonista e inverte-se no exato momento em que ele passa a viver na posição horizontal – ou seja, a partir do instante em que Emanuel vê-se colocado em uma cama, o leitor passa a saborear as páginas não mais em posição “retrato”, mas, sim, em modo “paisagem”.
Que espetáculo extraordinário! Dentre todos os livros que já vi, talvez esse seja o projeto gráfico mais incrível que já tive em mãos!
Sobre a história em si, posso dizer que Corações Cicatrizados me deixou completamente sem ar nas 30 primeiras páginas. Que escrita primorosa! As palavras são precisas, impecavelmente lapidadas, com frases curtas excepcionalmente bem redigidas, uma eloquência contundente capaz de conduzir o leitor ao âmago do que pretende o autor. Me causou um frisson tamanho que encerrei a leitura simplesmente para poder me maravilhar com o que tinha em mãos.
Em resumo, Corações Cicatrizados conta a história de Emanuel, um estudante de Medicina que descobre sofrer de uma tuberculose óssea que afeta a coluna vertebral. Emanuel parte, então, para Berck-sur-Mer, balneário no litoral norte da França especializado no tratamento da enfermidade. É ali que toda a história se desenrola. O mais impressionante é identificar que a história do autor se confunde com a do personagem. Blecher também foi diagnosticado com Mal de Pott aos 19 anos e faleceu vítima dessa enfermidade. É, portanto, um livro autobiográfico.
Enfim, passada a emoção intensa do início, me vi devorando o livro em doses homeopáticas, reduzindo propositalmente a velocidade da leitura. Quanto mais lia, mais desejava voltar ao início para saboreá-lo de novo.
Já no fim, tomado por profunda melancolia, fechei o livro com a certeza de ter uma grande obra em mãos. Todo livro melancólico encerra em si um lado luminoso. É como uma moeda, com duas faces. Não tenho certeza sobre a intenção de Blecher com esse livro, mas a minha interpretação particular me fez olhar para o outro lado da moeda: se Blecher, no alto dos seus vinte e tantos anos e vivendo sob condições tão horríveis, ainda assim foi capaz de produzir um livro tão intenso, do que reclamamos das nossas vidas? A vida nos impõe limites inimagináveis, isso é certo, mas, certo também é o martelo que cada um possui dentro de si para quebrar essas paredes.
Que belo martelo o senhor encerrava dentro de si, Sr. Blecher.
Recomendo este livro para todos que buscam conhecer a literatura romena, para todos que buscam por uma leitura profunda e de qualidade. Você sairá melancólico, mas, por favor, olhe o outro lado da moeda.
Por fim, ao contrário dos protagonistas de tanta ficção recente, Emanuel nunca é uma vítima, mas um observador perspicaz da natureza humana, incluindo a sua própria.
Leva 5 de 5 estrelas.
Passagem interessante:
“O mistério mais perturbador talvez seja aquele que se nos apresenta na mais simples evidência” (pg. 78)