helmalu 15/08/2016Um relato intimista de uma mulher e sua relação com o feminismoMá feminista é um livro que, apesar do que o título pode sugerir, não trata somente do feminismo, como também, de diversos temas que envolvem as mulheres e a sua representação na sociedade, literatura, mídia etc.. Esse hibridismo é a característica mais forte do livro, pois, pelo prisma do feminismo, Gay consegue apontar diversos outros temas que diretamente se relacionam a ele, nos guiando por exemplos. Estes exemplos que a autora traz, para mim, são a parte mais interessante do texto todo, sendo que ela usa séries como Girls, Law&Order: SVU, livros como Garota exemplar, a trilogia Jogos Vorazes e Cinquenta tons de cinza, além de diversos outros produtos culturais para mostrar como a mulher vem sendo representada na atualidade. Além de tudo isso, os ensaios são muito intimistas, pois, ao longo do livro, Gay, enquanto mulher negra e imigrante haitiana morando nos EUA, relata momentos da vida dela (como o estupro que ela foi vítima na adolescência e o preconceito que sofreu na universidade) para mostrar a relação dela com o feminismo.
O livro é dividido em seções, sendo elas: Eu; Gênero e sexualidade; Raça e entretenimento; Política, gênero e raça e De volta ao meu eu. Cada seção traz diversos ensaios relacionados e discussões muito pertinentes.
Na primeira seção, então, Gay vai falar sobre a relação que ela tem com o feminismo, porque se considera uma má feminista e como ela vê o movimento:
"Na verdade, justifica-se a imperfeição do feminismo por ele ser um movimento alimentado por pessoas, e estas são inerentemente imperfeitas. [...] Adoto abertamente o rótulo de má feminista. E faço isso porque sou imperfeita e humana. Não sou perita em história do feminismo. Também não sou, como gostaria, perita na leitura de textos feministas fundamentais. Tenho alguns... interesses, peculiaridades de personalidade e opiniões que podem não se alinhar com o feminismo tradicional, mas, mesmo assim, ainda sou uma feminista.." (p. 8)
Na seção Gênero e sexualidade, a autora fala sobre a representação da mulher na mídia e como isso tem nos prejudicado, ela também questiona a falta de representatividade não só da mulher, como também da mulher negra e fora dos padrões estéticos.
"Existem poucas oportunidades para as pessoas de cor se reconhecerem na literatura, no teatro, na televisão e no cinema." (p. 64)
Um termo que eu não conhecia e que a autora apresenta no texto é o termo "negro mágico", em inglês magical negro. Esse termo é designado para um personagem negro que aparece na trama só para salvar a pele do branco, aquele lugar-comum que tantas vezes vimos em filmes. O negro é o que morre primeiro. É o melhor amigo do protagonista branco. O personagem secundário que se sacrifica para o bem maior dos outros (brancos). E por aí vai. Esse artifício é usado tantas vezes que não é de se assombrar que já tenha um termo para designá-lo. E o que é mais triste é que até hoje isso ainda é usado. Enquanto eu lia essa parte do livro, consegui lembrar de pelo menos três filmes/séries em que esse personagem aparece.
Sem falar na representação da mulher: sexista, objetificada. A autora vai trazer, em sua análise, algumas protagonistas mulheres que fogem desse padrão, como é o caso de Amy, do livro Garota exemplar, ela é representada como uma mulher desagradável, vingativa, que foge do estereótipo de que as mulheres PRECISAM ser amáveis e aturar as traições de seus maridos. É um verdadeiro tapa na cara da sociedade. A escritora de Garota exemplar traz uma personagem humana. E Gay traz à tona o fato de que anti heróis são muito mais aceitos pela sociedade e pela crítica do que as anti heroínas. Enfim, esses são alguns exemplos que Gay traz e que comprovam como as mulheres e os negros têm sido usados para apagar seu protagonismo na mídia. Afinal de contas, você não vai poder dizer que determinado filme ou livro não tem uma mulher ou um negro no elenco, eles estão lá sim!
Algo que a Julya me falou, enquanto discutíamos essa questão, é que, aqui no Brasil, é fácil perceber que as novelas que concentram maior número de negros em seus elencos são aquelas em que o enredo envolve ou o período da escravidão no Brasil, ou o contexto das favelas. Diante disso eu não preciso falar mais nada, não é?
Na seção Raça e entretenimento, a autora fala mais pontualmente de alguns filmes com personagens negros os quais ela assistiu e como ela se decepcionou. Histórias cruzadas (2011), Django livre (2012) e 12 anos de escravidão (2013) são filmes que, apesar das premissas terem se mostrado inovadoras para ela, foram uma decepção. Apesar de os filmes em questão serem protagonizados ou focados em negros, eles continuam reforçando aquela velha ideia de que os brancos é que salvam os negros no final, além de usarem do sofrimento dos negros (físico e emocional) para atingir o "coração do público", realçando cenas em que os negros sofrem, são humilhados, agredidos, para Gay, isso é sofrimento demais e ela já está cansada disso. Eu imagino.
Há também a discussão sobre "cultura do estupro" e sobre como o estupro vem sendo representado nos livros, jornais, televisão etc. erroneamente. Para ilustrar essa afirmação, a autora cita o caso de uma menina de onze anos estuprada por dezoito homens no Texas (um estupro coletivo, vejamos, isso aconteceu há pouco tempo no Brasil) e como um artigo do The New York Times tratou do assunto: preocupado com a cidade, cujos moradores nunca mais seriam os mesmos e, pasmem, os dezoito rapazes também nunca mais seriam os mesmos. É sério isso? Não sei porque eu fico surpresa. E a vítima onde fica?
"Houve discussão sobre o fato de a menina de onze anos, a criança, vestir-se como se tivesse vinte, deixando implícita a possibilidade de que uma mulher possa "pedir por isso" e também de que, de alguma forma, é compreensível que dezoito homens estuprem uma menina." (p. 132)
Eu, na minha ignorante concepção de mundo, achava que discussões como a da cultura do estupro existissem somente no Brasil. Ledo engano. Nós, mulheres, não estamos seguras em parte alguma. A autora sugere, inclusive, que troquemos o termo por "Cultura de estupradores", pois quem sabe, assim, as pessoas tenham uma ideia mais clara da dimensão do problema.
Enfim, posso dizer que os temas que a autora traz são de extrema importância e precisam ser discutidos o quanto antes. Pois é visível que ser mulher, apesar dos avanços que foram feitos em relação à igualdade de gênero, ainda é muito perigoso. Enquanto a mídia continuar objetificando-nos e tratando casos de estupro com trivialidade, induzindo-nos a pensar que a vítima é a culpada, nada disso vai mudar.
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Fiquei muito presa a essa leitura, não posso negar, pois, assim como a Roxane Gay, também me considero uma má feminista, logo, tenho tentado cada vez mais me aprofundar para entender o movimento feminista. Posso dizer que essa leitura me abriu os olhos para muitas coisas e me fez aumentar minha empatia em relação às mulheres negras, já que pude ler o relato de uma, a própria autora. Isso me lembra a sororidade ❤.
Antes de terminar, preciso fazer um pequeno comentário à edição. Encontrei alguns erros de revisão, oito, para ser mais exata, erros de descuido mesmo, nada em relação à grafia. Outra coisa que me incomodou foi a tradução. Às vezes, eu sentia que aquilo não tava bem traduzido, dava para saber certinho o que estava escrito no original, porque não soava como português, em alguns momentos dava para sentir que a sintaxe e a prosódia eram do inglês. Eu imagino que a estilística da autora, no original, fosse algo que beirasse o linguajar jovem, com gírias e muitas expressões da língua inglesa, por isso, eu imagino que para a tradutora deve ter sido muito difícil traduzir esse livro, já que, se ela optasse por uma adaptação cultural... Não, ela nem deveria cogitar a ideia de tradução por adaptação cultural. Enfim, foi por esses dois motivos que eu dei 4 estrelas ao livro no Skoob, que são referentes à edição e não à obra. Agora vou parar porque meu pequeno comentário já está tão grande quanto um dos volumes de As crônicas de gelo e fogo, haha.
site:
http://leiturasegatices.blogspot.com.br/2016/08/ma-feminista-roxane-gay.html