Flávia Menezes 15/03/2024
? QUE O PRA SEMPRE, SEMPRE ACABA. ?
?Dias de Abandono? é um romance que foi publicado em 2002, e com sua linguagem envolvente e provocante, traz a história de uma mulher que foi friamente abandonada pelo marido, nesta trama onde permeiam dor, raiva e uma certa dose de insanidade (temporária, assim se espera!).
Escrito por ninguém menos do que Elena Ferrante, essa escritora italiana cuja identidade até hoje permanece em pleno anonimato (mesmo com tantas especulações sobre prováveis nomes de escritores e editores italianos que poderiam ser os prováveis rostos por trás desse enigma), em 2014 veio à tona mais uma dessas indagações, quando Domenico Starnone publicou ?Laços?, um romance de trama similar, abordando o drama de uma esposa que recebe a comunicação fria e direta do marido, sobre a sua decisão de deixar a sua casa e o casamento de longos anos, para recomeçar a sua vida ao lado de uma mulher muito mais jovem.
Apesar de negar veemente estas afirmações de ser a verdadeira Elena Ferrante, o fato é que Starnone (que é escritor, roteirista e jornalista italiano), com seu romance, levantou ainda mais suspeitas sobre este mistério.
Tendo lido ambos os romances, preciso dizer que é inegável a semelhança entre as narrativas, porém, cada autor segue um caminho bem diferente, e é o que deixou bem interessante essa curiosidade de conhecer ambas as escritas, embora (muito particularmente) eu confesse ter gostado bem mais do livro do Starnone do que deste.
Mas não estou aqui para fazer comparativos entre uma escrita e outra, até porque o livro de Ferrante foi o primeiro a ser publicado, e seu brilhantismo é inegável, já que assim como Starnone poderia ter buscado sua inspiração nele, outras tramas também parecem ter sido inspiradas em ?Dias de Abandono?.
Como é o caso da série turca ?Iludida? (que é uma adaptação da série de televisão britânica ?Doctor Foster?), em que a protagonista é igualmente deixada pelo marido por uma mulher mais nova, e tem uma cena que até parece ter sido retirada do livro da Ferrante, onde a Dra. Asya mantem em sua cabeceira o romance de Tolstói, ?Anna Karenina? (ou Anna Kariênina, ou ainda Anna Karênina, dependendo da tradução), e até faz uma leitura de um trecho do livro em um dos episódios.
Mas seja ela chamada Olga (?Dias de Abandono?), Vanda (?Laços?), ou Dra. Asya Yilmaz (?Iludida?), a questão é que em cada uma dessas histórias o que temos é uma protagonista em um mergulho vertiginoso em seu abismo emocional particular, para o qual foram lançadas sem qualquer aviso prévio, no momento exato em que seus maridos comunicam uma nova paixão, algo muito diferente do esperado ?até que a morte nos separe? que um dia juraram na frente de tantas testemunhas importantes na vida do casal.
Trazendo o foco para este romance da Ferrante, preciso dizer que ela não poupa em nada o leitor de toda a angústia, frustração, dúvidas e raiva que são os elementos inevitáveis que compõem qualquer processo de rejeição e abandono.
De fato, Ferrante foi cirúrgica em mostrar esse estado excruciante e implacável que uma pessoa sofre após um rompimento (que dificilmente não será doloroso para ambas, ou uma das partes) de um vínculo afetivo entre casais, seja este fruto de um casamento, ou de qualquer relação em que tenha ocorrido um laço afetivo mais profundo.
A narrativa da Ferrante tem o seu foco na linguagem da personagem, onde através das suas ações e reações, vamos sentindo todo o impacto que a perda causa na vida de Olga, bem como a forma como ela vai lidando com as situações de uma vida na qual (assim como acontece conosco) ela não pode simplesmente pausar, e só reiniciar quando se sentir pronta para voltar à sua rotina e obrigações diárias.
Em um primeiro momento, o que observamos em Olga é o choque, quando ela descobre que os laços indissolúveis do casamento não eram tão indissolúveis assim, e uma série interminável de questionamentos começam a invadir a sua mente.
Por que ele me deixou? Será que ele não me acha mais bonita? Será que eu deixei de ser atraente? Ou não sou mais suficiente? Será que não o faço mais feliz? Mas por que ela é mais interessante do que eu? Ela é mais bonita? É por ser mais jovem? Ou o faz mais feliz do que eu? Mas quando foi que eu deixei de fazê-lo feliz? Onde foi que eu falhei? Onde está a minha culpa?
Mas... será que existem de fato culpados?
Perguntas inevitáveis, cuja esperança é de que nunca sejam respondidas, porque não possuem nenhuma outra função além de aumentar a dor e o sentimento de rejeição, que por si só já são extremamente dolorosos para todo aquele que os experimenta.
Mas voltando aos questionamentos, este é um dos motivos pelos quais eu até gostei bem mais do romance do Starnone, porque ele foi muito assertivo quando acrescenta em sua história o ponto de vista de 3 das partes envolvidas no drama familiar: a esposa, o marido e os filhos (que muito embora devam ficar de fora dessa discussão, já que a separação é entre os pais e não sobre os filhos, mas ainda assim, foi bem interessante e ajudou a elucidar muita coisa sobre as decisões do marido).
Como eu disse anteriormente, não quero tecer um comparativo entre as obras, mas não há como não dizer que as lacunas que o romance da Ferrante deixa em aberto, Starnone ajuda a preencher (e que bom que li o livro dele antes de ler este!).
?(...) passei do uso de uma linguagem elegante, atenta a não ferir o próximo, a um modo de me expressar sempre sarcástico, interrompido por risadas desmedidas. Devagar, apesar da minha resistência, cedi à linguagem obscena?.
Neste romance, a linguagem de Olga é o fio condutor que vai dando a tonalidade dos acontecimentos. São as suas ações e reações frente a essa angústia dilacerante de ter que aceitar uma nova vida que lhe é imposta, uma vida que ela não desejou e a qual ela queria poder rejeitar, até porque não é tão fácil quando dizem o recomeçar do zero, ou o se lançar ao novo, que vai corporificando as cenas.
Toda perda traz um luto, e o que Olga nos mostra aqui é um sofrimento em um nível de exaustão que vai brincar com muita ousadia nos limites da sanidade mental.
E muito embora essa linguagem carregada de obscenidades da protagonista expresse em palavras toda a agressividade que a consome, eu confesso que essa excessiva (e obsessiva) vazão através da conotação sexual (que é voltada mais para o ferir, e não para o satisfazer), me deixou bastante irritada nestas partes.
Entendo que essa raiva e esse ódio expressos pela fala, sejam parte do que a protagonista tenta comunicar sobre o seu processo de luto. Mas quando tudo o que ela tenta dizer tem que vir junto com uma conotação sexual agressiva, isso me tira o foco da cena, para pensar em qual é o motivo por tamanha fixação sexual (e no corpo da nova mulher do marido)?
Talvez os italianos sejam mais ?modernos?, porque a enteada contar para a mãe que toma banho com a nova esposa do pai, é algo completamente nonsense para mim. Mas enfim... isso é só um desabafo.
De uma forma ou de outra, ?Dias de Abandono? traz essa temática dolorosa das rupturas nas relações que não podem ser evitadas, até porque não há como prever o que a vida nos reserva no momento exato em que nos apaixonamos por alguém. Ele é um importante alerta de que toda essa dor da perda, e esse peso da rejeição não é sobre mocinhos ou bandidos. Nem sobre certo ou errado. É sobre a vida, e em como nem sempre as coisas saem como planejamos.
Como disse acima, "Laços", do Domenico Starnone traz um complemento tão significativo à temática, porque ao mostrar o ponto de vista tanto do marido quanto da esposa, ele vai falar exatamente sobre essa questão das escolhas, da culpa, assim como vai mostrar todos os prós e contras que envolvem tanto o ?ir? quanto o ?ficar?.
Fico citando a obra do Starnone aqui, porque eu confesso que esse foco exclusivo na Olga, acabou por evidenciar os pontos negativos da personagem, especialmente no que se refere aos filhos.
É certo o quanto a protagonista estava sofrendo por uma situação traumática que a levou a uma exaustão mental. Porém, ainda assim, a sua negligência em relação aos filhos me dava a ideia de que ela não os conhecia bem. Como se antes da separação ela sequer soubesse o que gostavam, ou quem eles eram. Me fez pensar até se o marido cuidava mais deles do que ela.
Além disso, houveram momentos em que ela agia como se tivesse a mesma idade da filha, revelando uma imaturidade que me fazia acreditar que mesmo antes da separação, ela se mostrava uma mãe despreparada.
Para ser sincera, não consegui ver uma "mãe" em Olga.
Mas fato mesmo é que esse comportamento da Olga é uma denúncia expressa de que todos nós precisamos de uma rede de apoio, seja ela de familiares ou de amigos próximos com quem precisamos contar em momentos difíceis ou de crises.
Porque mesmo que pais e mães tenham esse desejo de ser sempre fortes pelos seus filhos, o fato é que é muito melhor que possam passar para eles a ideia de que ser pai ou mãe não faz com que deixem de ser humanos, do que enviar essa mensagem de que forte é aquele que nunca pede ajuda.
Para mim, ?Dias de abandono? não fala apenas do abandono de um marido, ou da perda de um casamento. Mas de um abandono a si mesma, e da perda da sua própria identidade.
Dias em que Olga esteve ausente da sua vida, especialmente do seu papel como mãe, porque não ser mais esposa não apaga o ser mãe.
Dias em que Olga esteve ausente dela, fazendo escolhas ruins para se vingar e fazer o outro sofrer, quando as consequências dos seus atos só traziam mais dor e sofrimento a ela mesma.
Dias em que Olga se esqueceu de como cuidar de si mesma, e de como amar é um ato voluntário, já que a verdade é que ninguém nos pertence, e nem podemos exigir que alguém nos ame do mesmo jeito que os amamos.
Por isso mesmo é que bem mais do que ter sido abandonada pelo marido com quem esperava passar toda uma vida, o mais triste mesmo foi ver o quanto Olga abandonou a si mesma.