Alê | @alexandrejjr 05/09/2021
Fragmentos de um vazio
Elena Ferrante é uma personagem peculiar do mundo literário. Em pleno século XXI, ela - há quem diga que seja ele ou até mesmo um casal, suposições das quais discordo - prefere o anonimato. Uma decisão interessante em tempos de superexposição e redes sociais.
Este “Dias de abandono” é o meu primeiro contato com a literatura desta celebridade anônima. Sinceramente? Não fiquei impressionado.
O assunto que irá permear a narrativa de Elena Ferrante é um dos mais explorados em toda a história da literatura: a traição. O grande diferencial aqui, no entanto, é o fato do tema ser abordado a partir da mulher abandonada. Olga, narradora e personagem principal do romance, apresenta aos leitores logo nas primeiras linhas o seu martírio. Iremos acompanhar os efeitos da imensurável ausência do amado, sua suposta metade conhecida, em sua vida.
Confesso que livros como este costumam ganhar minha atenção pois desconheço por completo a dinâmica de um relacionamento. Nunca tive um. Não compreendo o que é abrir mão da minha individualidade em prol de uma suposta - e desejável - coletividade harmônica. Afinal, no nível mais básico, é isso a vida a dois, certo? Além disso, não sei o que é não sentir medo, ansiedade ou curiosidade após os primeiros encontros. Não consigo imaginar quanto pesa a crescente monotonia de uma relação que perde, com o cuidadoso passar do tempo, os laços que a originaram. E, como se não bastasse, estou no campo daqueles que causam mais abandonos (homens) do que são abandonados (mulheres). Portanto, o nível de identificação com Olga, como vocês podem imaginar, foi superficial, distante.
Enquanto viramos as páginas, acompanhamos esse crescente abismo da narradora. Chega a ser penoso, principalmente para mulheres que se identificam com a história, acompanhar essa queda, porque aparentemente nada podia contagiá-la mais que o azar. Mas o curto romance apresenta três fases claras de uma mesma alma: o desespero, a loucura e a redenção.
O vazio que corrói a rotina da personagem de Ferrante é construído com competência, colocando os leitores na pele de muitas mulheres reais que vivem esse tipo de desgraça todos os dias em nosso maltratado mundo. Creio que essa busca por uma profundidade psicológica, na tentativa de desnudar os fragmentos do vazio de Olga, seja o maior mérito do livro. Mas temos alguns problemas no caminho.
Vamos lá. De maneira sucinta. A primeira incongruência é a relação de Olga com os filhos. Apesar de não ser inverossímil, não consigo conceber a crueldade ingênua exercida pelas crianças para com a situação da mãe. Posso falar com propriedade que a impotência de um filho diante do abandono de sua mãe é uma das piores sensações que se pode sentir. Mas devo salientar que são situações e situações, e devo dar crédito à autora por apresentar uma possibilidade dessa relação entre mãe e filhos, optando aqui por colocar os pequenos, inconscientemente, mais ao lado do pai.
A segunda inconsistência são as metáforas forçadas durante a narrativa. E eu não gosto de ter a minha capacidade de raciocínio insultada. Compreendo que Olga estava desesperada, presa no abandono do marido e por isso acho patético o reforço dessa mensagem através de uma determinada situação vivida pela personagem em seu apartamento, assim como a ingênua utilização final do cão para uma espécie de clareamento do seu ponto de virada. Para finalizar, o desfecho da história não me satisfaz. Não consigo entender como uma mulher que compreendeu o seu momento optou por viver com determinado personagem. Esse final me pareceu inacabado ou preguiçoso, de uma impotência ensurdecedora.
É isso. Com este texto inacreditavelmente prolixo, chego a minha centésima resenha nesta comunidade. Eu havia planejado realizar um texto comemorativo em homenagem a João Ubaldo Ribeiro. Escreveria - ou humildemente tentaria falar - sobre uma obra fundacional da literatura brasileira, o imortal “Viva o povo brasileiro”, meu livro preferido. Não foi possível. O tempo e o acaso são implacáveis - e inimigos do planejamento. Mas, como eles gostam de pregar peças, permitiram que Elena Ferrante fosse a escolhida para esta marca. Uma pena que eu não tenha correspondido à altura.