letscia 01/04/2024
49 (2024) eu era um cometa.
"Não expliquei que queria apagá-lo completamente do corpo, arrancar de mim até seus lados que nunca fui capaz de enxergar. Não falei que queria retirar-me do refluxo da sua voz, das suas fórmulas verbais, de seus modos, de seu sentimento do mundo. Queria ser eu, se essa fórmula ainda tivesse algum sentido. Ou pelo menos queria ver o que permanecia em mim, uma vez que o houvesse retirado."
Dias de Abandono é uma obra que explora a separação conjugal e a, muitas vezes, consequente sobrecarrega na maternidade, onde a mulher é obrigada a criar seus filhos e cuidar de suas tarefas sozinha, sem auxílios externos ou uma rede de apoio estável. Olga é uma personagem claramente melancólica, intoxicada pelos estigmas de sua mãe acerca das "pobres coitadas" abandonadas pelos seus maridos, posto que ela passa a ocupar com amargura. Durante anos de relacionamento, ela foi desmotivada a trabalhar e continuar a estudar, focando suas atenções nas crianças e no seu marido, buscando algo próximo à perfeição. Em muitos anos dentro da rotina, Olga perde sua identidade, deixando que seu marido preencha todas as partes vazias dela, o que piora ainda mais a relação que já não era ideal. Após traições, abandonos e decepções, Olga encontra-se em um dilema: um coração partido, duas crianças, uma mente que já não funciona e gravíssimos problemas emocionais. As crianças, coitadas, acabaram ficando no meio de tudo. Viram o pai, Mario, largar a família para se relacionar com uma jovem amante um pouco mais velha do que eles. Viram a mãe entrar em choque, machucar-se, abusar de uma linguagem torpe e muito vulgar, enrolar-se em suas tarefas e mal conseguir cuidar de si mesma. Infelizmente, foram negligenciados por meses, até que ambos os pais identificassem essa "demanda". Cuidaram da mãe e juntaram seus caquinhos enquanto estavam confusos e sentiam falta do pai, da vida como ela costumava ser.
A escrita é excelente, mas o uso da linguagem obscena me incomodou muito. Entendo que faz parte da estilística do livro, porém não acho que tenha encaixado bem. De qualquer forma, Elena Ferrante é mais do que uma escritora, ela é uma autora atenta às mazelas da sociedade e sabe escrever mais do que palavras, trazendo sentimentos profundos à obra. O abandono é uma das piores violências que alguém pode sofrer ao longo da vida, e essa dor foi explicitada na narrativa de maneira fenomenal. É um ótimo livro, apesar dos pequenos detalhes que me incomodaram.