Oggione 08/01/2024
O conflito silencioso das marés, onde tudo reverbera em um estrondo oco
“E também dentro de mim a onda se ergue. Cresce; arqueia o dorso. [...] Que inimigo percebemos agora a avançar contra nós, você a quem cavalgo agora, parados aqui, escarvando este trecho do calçamento?“
Nunca suportei a ideia de terminar uma obra magnífica, então, sempre que leio uma passagem sublime, tenho o hábito de fechar o livro e sair um pouco para respirar. Com isso, tento suspender o inadiável ao máximo, fazendo o livro durar de todas as maneiras. A potência de outras vozes me enche tanto que quase me fragmento. É assombroso! Imagino que seja uma experiência comum a todos os leitores. Então, repito, quando me deparo com uma passagem linda, cesso imediatamente a leitura e saio, de qualquer forma, para respirar, para refletir os golpes que um livro potente me desfere.
“Quero arrancar-me dessas águas. Mas elas se amontoam sobre mim; arrastam-me por entre seus ombros enormes; reviram-me; sacodem-me; fico estendida entre essas longas luzes, essas longas ondas, essas veredas intermináveis, com gente que me persegue, persegue.”
As ondas (1931), de Virginia Woolf (1882–1941), é certamente uma obra-prima complexa. Diferentemente de publicações anteriores, que seguem uma estrutura mais “lógica”, onde conseguimos compreender com mais precisão o tempo e os lugares onde as personagens atuam, em As ondas isso não acontece, visto que o romance é dirigido por vozes de personagens praticamente incorpóreos.
Começando na infância e terminando na velhice, o livro narra – por meio de monólogos interiores – as vidas e os pensamentos de Bernard, Louis, Rhoda, Jinny, Neville e Susan em um fluxo de consciência altamente literário e elíptico – e talvez essa seja uma das grandes complexidades do livro, pois cabe ao leitor o trabalho de inferir e preencher os vazios do não dito.
Aqui, de ponta a ponta, cada acontecimento é mais súbito do que constante, ainda que a obra seja atravessada por uma linha condutora tênue. Nesse sentido, os conflitos que surgem ao longo da trama são psicológicos e internos. As personagens são as ondas da narrativa que colidem em fluxos e refluxos incessantes, que questionam a cada encontro, a cada contato com a morte e com o amor, a essência da existência humana.
“O som do coro vinha através das águas, e senti brotar aquele antigo impulso que me empurrou a vida inteira, o de ser lançado acima e abaixo no bramido das vozes de outras pessoas,cantando a mesma canção; jogado acima e abaixo no bramido de uma quase insensata alegria, sentimentos, triunfos,desejos.”
A maneira como as repetições são usadas na narrativa, ecoando sensações, pensamentos e passagens temporais, é sublime. Danças rítmicas, como os avanços e os recuos do ondular marítimo, as personagens falam a partir de suas perspectivas e se retiram de cena, traçando um panorama impressionante e singular da vida, pintando uma paisagem complexa e sensível da natureza. Pouco a pouco, trazendo à tona o incógnito que habita o mais profundo e escuro do humano, Virginia Woolf tece particularidades para as personagens, mas sem desmanchar a teia comum que as liga. Nesse compasso, o livro se desenvolve num redemoinho de vozes que se encontram e se complementam.
Não há cisão entre as personagens. Conforme os amigos amadurecem, passam naturalmente a ter outras visões de mundo, mas os elos que constroem não se partem, pois são conectados a um ponto em comum. Embora distintos, todos são os mesmos, isto é, os seis são um, e o um é Percival, o único amigo que não tem voz na narrativa. Percival realiza esse papel fundamental ao longo do livro. Expostas simbolicamente, a sua presença e a sua ausência são sentidas por todos os amigos, fato que colabora para a profundidade da história e dita as experiências e as reflexões das demais vozes durante as fases de suas vidas.
Além das vozes das personagens, a natureza está sempre presente, como a praia que é descrita no início da narrativa e que se prolonga por todo o livro. Também vozes incorpóreas, esses interlúdios – marcados sobretudo por movimentos sensoriais de águas, aves, sombras e luzes – narram a passagem do tempo como se fossem o próprio tempo que habita todo o espaço. O desenvolvimento dessa paisagem, que expõe o curso completo de um dia, ressalta simbolicamente os ciclos que as personagens atravessam ao longo da vida até chegarem à velhice, onde a solidão se manifesta mais ostensiva com a chegada da noite.
“O sol ergueu-se mais. Ondas azuis, ondas verdes derramam um rápido leque sobre a praia, circundando as pontas dos cardos-marinhos, depositando poças rasas de luz aqui e ali na areia. Atrás de si, as ondas deixaram uma tênue orla negra. As rochas, antes nevoentas e macias, endureceram, vincadas por fissuras rubras.”
Conforme as fases da vida avançam, os pensamentos ficam mais profundos, e as correntes de consciência das personagens submergem em uma imensa introspecção. Assim, os temas da noite e da solidão, que se tornam assuntos constantes, representam a chegada da morte e uma tentativa de união à brevidade da vida. Como devemos nomear a morte? Vemos as palavras se enlaçando como espirais de fumo e somos tragados pela noite. Os verdadeiros têm mais sucesso nas sombras da solidão, espaço onde as grandes frases nascem. Somos o nada, mas seguimos ribombando.
Se a maior relevância da obra é o estrondo de cada palavra, compreende-se que os princípios clássicos do romance foram deixados de lado para se buscar aquilo que existe antes da forma. A infância, a juventude e a maturidade: do mar, somos a potência da maré, a grandeza do inexplorado e a solidão da profundeza. Fragmentando o tempo e o espaço, a força da sua linguagem é uma agitação sísmica que sulca e estabelece outras conexões. A água, que é sobretudo indivisível, sustenta a complexidade do mundo antes do nosso surgimento. Atravessamos o tempo e a história ao longo da vida, mas tudo isso acontece em um único instante.
“As árvores, dispersas, ordenavam as coisas; o denso verde das folhas atenuava-se sob uma luz dançarina. Eu os recobri com uma frase súbita. Com palavras, salvei-os da condição amarga.”
Aqui, em diversos monólogos, as reflexões mais complexas que envolvem a existência durante a fase adulta ganham corpo como alguma coisa que sempre escapa ao manejo humano e que nunca cessa o seu curso. Na fímbria dos sentidos, compreende-se que também somos a água que ondula pelo tempo, a água que avança e se derrama na areia da praia, a água que avança e se choca contra o rosto da rocha, mesclando, embaralhando e marcando todas as fases de nossa vida, reconfigurando a cada segundo o que em nós é eterno.
“Saciado e repleto, sólido na satisfação da meia-noite, eu, a quem a solidão destrói, deixo que o silêncio tombe gota a gota.”
Tido por muitos como uma obra basilar do século XX, As ondas é um livro sofisticado que solicita a sua dedicação e a sua persistência. Percorrendo temas como a solidão, a amizade, a espiritualidade, o autoconhecimento etc., Virginia Woolf cria uma obra potente, sensível e inquietante. Quando compreendemos o seu ritmo, a sua belíssima prosa e a sua autenticidade, a leitura começa a fluir e a ganhar outros contornos. Virginia Woolf tem a capacidade de nos surpreender a cada livro – e As ondas é um maremoto.
E que maremoto! Estende-se a obra ao fechar o livro. E esse gesto representa sempre um diálogo com todas as formas que se manifestam ao longo da narrativa. Sem muros. Sem amarras. Sozinho, no cais deserto, vê-se mais íntimo do mundo. Com ele. Dentro dele. De súbito, fica óbvio que, quando Virginia Woolf escreveu As ondas, ela não se afastou do livro para admirá-lo de algum canto distante. Virginia Woolf escreveu As ondas e mergulhou em sua obra – essa partida que é, por fim, um excesso de intimidade com o mundo, não uma fuga; partida que não tem volta, como são todos os últimos encontros, extremos. Essa é a potência da criação.
“É a morte. A morte é o inimigo. É contra a morte que cavalgo com minha lança erguida e meu cabelo voando atrás de mim, como o de um jovem, como o de Percival, quando galopava na Índia. Cravo as esporas em meu cavalo. Vou lançar-me contra ti, imbatível e inflexível, ó Morte!”