Renan Barcelos 07/10/2016
Um tema antigo, uma boa história
De autoria do mineiro Paulo de Castro Gonçalves, O Androide é um livro de ficção-científica ambientado no Brasil que, apesar de seu nome pouco inspirado, possui uma trama interessante, bem escrita e que lida muito bem com seus personagens. Romance de estreia do autor, a obra se vale de um recurso que já é lugar comum: a revolução das máquinas, mas Castro consegue abordar a ideia de forma interessante, mostrando um ambientação que não apenas é um pós-apocalipse para a humanidade, mas também para a maioria dos robôs que mantêm a sua inteligência artificial ainda autônoma.
Em O Androide, toda a humanidade foi dizimada após a revolução das máquinas, no entanto, nos mais de mil anos que se seguiram à destruição da civilização humana, os robôs não se deram tanto melhor. Um ditador chamado H1N1 lançou uma atualização na rede que fez com que todos os robôs e androides com inteligência artificial ficassem inertes, restando ao poucos “sobreviventes” um mundo hostil e desabitado onde os satélites de H1N1 buscam por androides e enviam sentinelas, robôs sob seu total controle, para destruir os que ainda estão libertos. Neste cenário desolado, JPC-7938 um androide médico agora desprovido de propósito, acaba se encontrando com outro androide após centenas de anos de solidão e junto a este robô engenheiro, eles acabam descobrindo que podem conseguir ressuscitar a raça humana.
A história do livro é simples e curta. Seus acontecimentos são bem diretos, com o mínimo necessário para que a trama seja contada com eficácia, e embora a ideia seja criativa e interessante, ela parece ser mais um motor para mostrar o “funcionamento” dos personagens do que realmente o foco principal da obra. E em O Androide isto não é um problema, porque de longe o melhor do livro e a forma como os protagonistas – e antagonistas também –, todos androides, vão sendo apresentados e desenvolvidos.
Não ficam dúvidas quanto a habilidade de Castro em trabalhar os seus personagens. O ponto principal é que eles não são aquele tipo de inteligência artificial que praticamente não difere de uma inteligência humana. JPC-7938 e os “amigos” e “inimigos” que ele faz durante sua jornada são todos máquinas. Código, razão, processamento e alocação de memória. Eles não tem sentimentos, eles tem cálculos. Eles não tem ambições, têm aquilo que foram programados para fazerem e o que seus códigos conseguem computar como apropriado dentro dos próprios parâmetros deles. Eles não sentem medo, dor, preocupação, ou qualquer outro tipo de emoção, e o autor consegue trabalhar isto muito bem durante a história, conseguindo descrever as reações deles robóticas como são, apesar de serem criaturas com discernimento e inteligência.
Mas isso não quer dizer que não exista emoção na leitura. Apesar dos próprios personagens talvez não serem realmente capazes de sentir, a narrativa constantemente força essa ideia. Mostrando eles tentando, as vezes quase conseguindo ter alguma reação mais humana. Em alguns pontos talvez até possa se pensar que eles realmente tiveram algum sentimento real, mas isso nunca é certo, e facilmente desmistificado pela lógica do que os personagens deveriam fazer no momento. E ainda assim, mesmo que eles não possam sentir essas coisas, o texto consegue passar uma espécie de agonia, uma espécie de ansiedade, quando numa cena carregada de sentires, os personagens estão impassíveis diante de tudo, com olhos frios e sem qualquer reação, mas ainda assim passando toda uma ideia de que talvez, talvez, haja mais por trás daquela expressão artificial de morosidade. Mas em geral, não há, ou talvez isso dependa de quem está lendo. O autor, no entanto, em vários momentos é bem enfático ao afirmar que eles não sentiam qualquer sentimento e que suas respostas eram, no fim, o que foram programados para fazer. Mas ainda assim... será que mesmo não sentindo eles ainda podem demonstrar? Uma espécie de sentir sem sentir que seja real e não artificial?
É um dilema que alguns dos humanos que foram próximos a esses robôs passam. Parte do livro é dedicada a flashbacks que mostram a “vida” pregressa dos personagens. E nesse sentido, nenhum tem menos importância do que o outro. Com um ou dos capítulos, essas reminiscências mostram como os androides chegaram aonde estão, e a forma como eles interagiram com a humanidade e com a iminência da revolução das máquinas, a qual, ajudando ou não, acabaram tendo sua participação. As cenas que apresentam o passado dos robôs estão entre as melhores do livro, onde se passa para o leitor os desafios que tais maquinas enfrentaram para conseguirem se enquadrar e as particularidades que suas personalidades – ainda que desprovidas de emoções e sutilezas – acabam criando. Nestas partes da obra, mesmo que o foco sejam essas máquinas superavançadas, é possível ver como os seres humanos interagiam com elas, tentando entende-las, respeitá-las, amá-las e fomentarem algum sentimento em suas unidades centrais de processamento.
Apesar de Castro conseguir desenvolver personagens e sutilezas com uma qualidade incrível, o mesmo não acontece com suas cenas de ação. Um tanto convolutas e incapazes de passar o tipo de emoção necessário a este tipo de passagem, tais segmentos acabam sendo no máximo medianos. Alguém poderia argumentar que ação nem de longe é o foco do livro, o que é verdade, mas algumas dos poucos momentos de ação tem sequencias hollywodianas demais para se afirmar que o autor não quis colocar um pouco de épico nelas. Apesar das ideias serem boas, um tanto quanto clichês, talvez, como ocorre num duelo de JPC-7938, essas cenas não conseguem passar empolgação ou assombro. O que de certa forma é até adequado para o livro, já que nenhum de seus personagens consegue sentir isto também.
No entanto, enquanto os econômicos momentos de tiroteio e combate deixam a desejar, as cenas calmas e puramente descritivas brilham. As descrições do autor são muito boas e o uso das vírgulas impõe um ritmo vagaroso e contemplativo. Ele faz questão de tornar o cenário a volta dos personagens algo único, vivo e belo, e de longe o melhor capítulo da obra é um desprovido de diálogos, que apenas mostra uma rotina tediosa e inútil de JPC-7938, apresentando também a casa e a região da mata onde vive o personagem. Um capítulo que, apesar do estilo das descrições diferirem deste outro autor, é tão bom quanto alguns contos de Ray Bradbury.
O Androide não é um livro que deve ser lido por alguém em busca de momentos de ação. Mas aqueles que estiverem dispostos a encarar uma leitura um pouco mais lenta e descritiva vão descobrir uma obra de muita qualidade, com passagens muito bem escritas e compostas com cuidado. A história, apesar de interessante e bem bolada, não é tão interessante quanto o desenvolvimento dos personagens androides do livro e a forma como o autor compõe as passagens que lidam com suas não-emoções. As descrições, muito bem escritas, são um espetáculo a parte, e Paulo de Castro entrega uma obra de estreia muito competente e interessante. Recomendada os brasileiros que gostam de se embrenhar no mundo da ficção científica.
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