Alê | @alexandrejjr 16/04/2022
A lógica rebelde
Recentemente, eu esbarrei em um vídeo com um trecho de uma entrevista da escritora estadunidense Siri Hustvedt ao canal Louisiana Channel. Nessa conversa, disponível no YouTube, Siri afirma que “quando você lê, você é possuído pela voz de outro”. Na sequência, ela faz uma reflexão interessantíssima que vai nortear esta resenha: Siri acredita que, justamente por esse fato intrínseco à leitura, muitos homens não leem livros escritos por mulheres, pois “eles têm que se submeter à autoridade de uma mulher e isso”, continua ela, “faz com que eles se sintam emasculados”, ou seja, que percam a virilidade ou, em termos mais claros ainda, que percam sua masculinidade.
Último romance publicado em vida por Elvira Vigna, “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é literatura para leitores sofisticados. A grosso modo, como em outros livros da autora, esta é uma história em que outras histórias são contadas. E aí é que entra o tal do palimpsesto. Eu - e praticamente todos que forem ler este livro - pesquisei o que significa o maldito do palimpsesto. E, de acordo com o dicionário Houaiss, palimpsesto é um “papiro ou pergaminho cujo texto primitivo foi raspado para dar lugar a outro”. E Elvira, ao juntar uma palavra tão erudita e incomum a versão abreviada e vulgar de prostituta, mostra logo no título que este não é um livro para amadores.
Em uma narrativa que mistura passado e presente, em que o que se conta é, em parte, desconhecido (eis aqui a primeira genial artimanha narrativa), Elvira vai debater as relações de hierarquia e gênero que estruturam nossa sociedade. Ela vai abordar, principalmente, as consequências da invisibilidade e do silêncio opressor praticado pelo patriarcado - do qual eu e qualquer um com um pênis no meio das pernas faz parte. É na figura do detestável João, que conta as suas historietas com prostitutas à narradora sem nome (mais uma invisibilidade proposital!), que os leitores devem perceber a primeira camada de discussão: João, o homem genérico por excelência, precisa provar a própria masculinidade através do sexo, como se fosse uma válvula de escape. E é nas prostitutas, esses seres marginalizados que antes de serem mulheres são apenas objetos descartáveis para João, que ele atinge seu vazio objetivo de poder e superioridade.
Ao optar por uma narradora sem nome que intercala as histórias de João, o irreversível frequentador de putas, e Lola, sua ex-esposa “alta, magra e loura” que sofria abusos morais constantes de seu ex-companheiro, Elvira traz à tona inúmeras denúncias relacionadas à representação da mulher. Ficção feminista por excelência, “Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é uma obra singular dentro da literatura contemporânea nacional. Mas isso se deve a outro fator também: o formal, estilístico. E aí eu tenho minhas ressalvas.
Se tematicamente o romance é impecável, o mesmo não se pode dizer de sua estrutura. Realizada em frases curtas e cortantes, dotadas constantemente de um sarcasmo e de uma seriedade nunca vistos por este leitor, Elvira cria certa confusão ao adotar recursos como a fragmentação, a repetição e o uso de versões para relatos anteriormente já apresentados durante a narrativa. É claro que, dessa forma, a autora problematiza o ato de narrar, o que é louvável em termos estéticos, mas não se traduz em prazer imediato para os leitores. Isso, infelizmente, me tirou com alguma frequência da leitura, apesar de compreender que eu e provavelmente novos leitores deste romance dificilmente vão se deparar com uma estrutura narrativa tão singular e, porque não dizer, tão original quanto esta.
“Como se estivéssemos em palimpsesto de putas” é um romance que merece ser lido com atenção, cuidado e principalmente paciência. O que Elvira Vigna faz aqui é de uma importância imensurável. Ao permitir que sua narradora preencha o silêncio e a escassez de vozes das mulheres que perpassam sua história, a autora se posiciona e, de maneira transgressora, devolve a identidade e a subjetividade feminina que é esmagada pela velha e incorrigível estrutura patriarcal que impera na sociedade - e na literatura - brasileira. Afinal de contas, ela mesma, enquanto esteve viva, foi uma escritora reconhecida pela crítica que, no entanto, possuía um grupo escasso de leitores e nunca estampou nenhuma lista de mais vendidos. Ou seja: é através da própria ficção que Elvira reivindica seu espaço, tanto o social quanto o literário.