Queria Estar Lendo 06/09/2018
Resenha: Garotas normais
Garotas normais é o primeiro romance adulto da australiana Georgia Clark, publicado no Brasil pela editora HarperCollins - que nos cedeu um exemplar para resenha -, o livro é o que a autora gosta de definir como "um conto de fadas feminista".
Neste romance com pegada chick-lit somos apresentadas a três garotas que estão com seus vinte e poucos anos, moram em New York e formam um grupo de amigas diversificado e irreverente que tem suas vidas modificadas ao ingerirem o Bonita. O produto, que é apenas identificado desta forma e jamais descobrimos além disso, faz com que as garotas até então "normais" passem a ser mais do que apenas lindas, elas são Bonitas. E a beleza, como é de se esperar, acaba abrindo portas.
Evie era apenas uma garota feminista e engraçada lutando para encontrar um lugar melhor na empresa onde trabalha, uma revista feminina bem ao estilo "10 maneiras de deixar ele caidinho por você", enquanto se diverte com as amigas e sai em encontros ocasionais com garotas que conheceu online. Willow é a pobre menina rica, filha de um cineasta muito famoso, que se divide entre lidar com o fracasso de sua exposição e o que isso significa para ela como artista, e com a forma como se sente sobre si mesma e o relacionamento com seu namorado. E, por fim, temos Krista: a filha de indianos que largou a faculdade de direito para tentar ser atriz, que é totalmente irresponsável e está se afundando cada vez mais em dívidas.
"A coisa toda estava se transformando em um filme de Sofia Coppola: bonita de se ver, mas o que significava? Tudo? Ou nada?"
Mas ao entrarem em contato com o Bonita essas garotas ditas normais passam por uma transformação, não apenas fisicamente. É como se ao se tornarem Bonitas e criarem essas novas personas elas, de alguma forma, adquirissem uma segunda personalidade. Em alguns aspectos a ideia é de que ao usarem esses corpos elas estariam, talvez, finalmente se libertando para serem elas mesmas. Porque, de alguma forma, garotas Bonitas não tem medo de nada. Garotas Bonitas sempre conseguem, sempre chegam lá.
Por isso que Evie cria Chloe, a apresentadora/jornalista que pode conseguir finalmente apresentar um conteúdo interessante e relevante para as mulheres, que faça diferença no mundo, e não fique apenas vendendo sexo ou maquiagem. É Chloe, também, que dá a Evie sua grande chance de viver um romance com Velma Wolff, a autora favorita de Evie e por quem ela tem uma crush enorme.
"Este corpo é um mapa. Para onde ele vai me levar?"
Se Evie/Chloe está se dando bem na área do romance, Willow vai de mal a pior. Transformar-se em Caroline afeta cada vez mais o seu namoro com Mark, de uma maneira que todas as suas ações resultam em dor. Caroline está machucando todo mundo que Willow ama, principalmente a própria Willow.
Enquanto isso, Krista vive o auge da sua carreira. Agora como Lenka, ela finalmente tem a grande chance de estrear em um filme e talvez começar a firmar sua vida como atriz, sem falar em finalmente conseguir atenuar um pouco suas dívidas. Mas Krista sempre foi enérgica e um tanto descontrolada, e Lenka parece acentuar esse seu lado irracional, fazendo com que ela esteja sempre metida em alguma confusão e sua curta carreira vire uma montanha russa cheia de altos e baixos.
Eu poderia terminar essa resenha aqui e teria coberto o que tem para se falar do básico sobre esse livro, mas não existe nada de básico sobre ele. Um dos pontos mais interessante do livro é como ele se vende de uma forma, como se fosse só mais essa história sobre garotas fúteis e com problemas pequenos que acabam se descobrindo bonitas e encontrando a felicidade, mas na verdade é muito mais do que isso. Garotas Normais não tem nada de apenas "garotas normais", porque cada uma delas é diferente, tem suas excentricidades e sua parcela de representatividade.
Para começar Evie é uma personagem autodenominada bissexual, o que fica explícito logo nas primeiras páginas quando o seu encontro acaba por ser outra mulher. COMO eu não sabia disso? Foi um choque e um prazer tão grande pra mim, também bissexual, poder finalmente encontrar uma protagonista com quem eu possa me identificar, que eu mal tinha começado a leitura e já estava em êxtase. Vocês tem noção de quantas vezes eu já joguei no google "livros com personagens bissexuais" porque eu precisava ler sobre alguém como eu, porque eu estava cansada de casais heterossexuais e cota para personagens LGBTQ+?
"- Não sei quem sou, - diz Evie, com a voz rouca. - Não sei mais quem as pessoas são."
Ter a sexualidade da Evie jogada de forma tão simples e natural no livro, nunca sendo um problema ou um ponto central, mas sim mais uma característica da personagem como qualquer outra, me fez borbulhar de alegria. Sim, eu posso ter tido um problema ou outro com a definição de "ser lésbica" por estar em um relacionamento com outra mulher - porque ninguém deixa de ser bi de acordo com quem tu te relaciona, se tu é bi tu é bi e pronto -, mas eu entendo que possa ter sido um recurso de linguagem e um erro comumente cometido. Mais incrível do que isso? Evie é bissexual, mas não é a única. Porque garotas normais podem ser bi, lésbicas e até mesmo hétero, quem diria.
Willow, possivelmente a personagem mais problemática do grupo, é tida pelas amigas como dona de uma beleza quase que etérea, mas tem problemas em aceitar seu próprio corpo, e também na forma como se relaciona. As transformações sofridas por ela ao longo do livro são as mais pesadas, mexendo de certa forma com a psiquê da personagem e daqueles ao seu redor. Willow está quebrada, esteve assim por muito tempo, e Caroline surge apenas para estilhaçar ainda mais esses pedaços. Inicialmente foi a personagem que, pós transformação, mais demorei a me conectar e de fato entender suas atitudes. Até que eu entendi que Willow/Caroline não está ali para ser compreendida, e sim sentida, e nossa, como é forte.
"Mas minhas fotografias serão diferentes, pensou Willow, virando a cabeça, querendo "desver" tudo. Porque já me foderam."
Ainda falando sobre diversidade, Krista estabelece seu papel como a personagem de cor e multicultural. O que eu amei sobre isso é como ela se apega a alguns clichês, a filha rebelde que luta contra a vontade dos pais controladores, mas sem nunca deixar de assumir seu papel como clichê. É como a própria personagem diz, sobre ser sempre escalada para os papéis da "exótica", sobre ser alguém em um nicho. Ao mesmo tempo, os problemas profissionais e românticos vividos por ela em nada tem relação com sua cor ou etnia, ela é apenas mais uma garota normal.
"Conscientemente, ela sabia que uma sociedade que transformava a beleza em poder para as mulheres era muito errada."
O que nos faz voltar ao título do livro e toda essa distinção entre as "garotas normais" e as "garotas Bonitas". Foi muito perspicaz da autora ela não fazer com que as meninas fossem "aperfeiçoadas" em seus traços, mas sim tomassem posse de um corpo totalmente diferente do seu, aumentando ainda mais a ideia de "uma nova persona". Desta maneira ela realça a ideia de que o Bonita trás, na verdade, não a "beleza" - algo que é tão subjetivo -, mas o padrão estético tido como bonito. Uma das críticas trazidas por Evie, por exemplo, é a mudança de cor de Krista, que deixa de ter um tom de pele chocolate e passa a ser mais como café/capuccino. Evie briga, indignada, por este ser apenas mais um esteriótipo estético mercadológico; o de que a pele branca é mais bonita, apenas para ser reforçada pela própria Krista, que conclui que agora sim ela está exótica na medida certa para ser aprovada nos testes (já que antes, com seu tom de pele mais escuro, ela era exótica demais).
Reflexões e abordagens como essa estão espalhadas por todas as páginas do livro, disfarçadas em meio a conversas e descrições que podem ser tidas como fúteis, mas que servem para corroborar com a ideia principal da história de que a beleza é apenas uma parte de quem somos. Ser Bonita pode sim facilitar caminhos e abrir portas, mas é preciso mais do que isso para continuar lá. Todo facilitador tem suas próprias complicações e, principalmente, nem tudo que é Bonito é belo. E quanto as meninas, as tais "garotas normais", o que existe de mais normal nelas é o quão especial, diferente e representativa cada uma delas é. Exatamente como cada uma de nós.
"O filme tinha terminado, as luzes foram acesas de novo, e ela estava se levantando, pronta para sair do cinema e voltar para a vida real: imperfeita, estranha, maravilhosa e real."
Fiquei o tempo todo esperando pelo momento em que este livro me desapontaria. E isso nunca aconteceu. Porque Garotas Normais são o melhor tipo de garotas.
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