Sr. Bergier & outras histórias

Sr. Bergier & outras histórias Anderson Fonseca




Resenhas - Sr. Bergier & outras histórias


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Krishnamurti 17/09/2016

A FORÇA PERSUASIVA DO FANTÁSTICO EM Sr. BERGIER & OUTRAS HISTÓRIAS
Por Krishnamurti Góes dos Anjos

O fantástico ... é uma coisa muito simples, que pode acontecer
em plena realidade cotidiana, neste meio-dia ensolarado,
agora, entre você e eu, ou no metrô,
quando você estava vindo para este nosso encontro.
Julio Cortázar.
In: Bermejo, Ernesto González. Conversas com Cortázar.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, p. 37

Literatura fantástica é um gênero literário em que narrativas ficcionais estão centradas em elementos não existentes ou não reconhecidos pela realidade ou pela ciência dos tempos em que a obra foi escrita. Assim, por mais que se tente aproximá-la do real, está limitada ao fantasioso e ao ficcional. Todo texto fantástico tem elementos inverossímeis, imaginários, distantes da realidade dos homens. Distante da realidade dos homens vírgula. Quando um texto que a princípio poderia se caracterizar como Fantástico traz em si, encrustada, uma causalidade de caráter real ligando os acontecimentos no decorrer da narrativa, dá-se o que poderíamos chamar de força persuasiva da literatura. Não esqueçamos que literatura, seja lá em qual gênero se manifeste, está sempre alicerçada no mundo concreto, sempre alça voo e se aproxima da imaginação e da ficção.
Portanto, e numa perspectiva que não entre no mérito da estrutura das histórias, mas com o dialogar do narrador-autor, o desenvolvimento da personagem principal, ou ainda, a relação que se estabelece entre os personagens, o fantástico se nos parece como uma linha tênue, que abala e ao mesmo tempo dá a certeza. Persuasão como se sabe, é uma estratégia de comunicação que consiste em utilizar recursos emocionais ou simbólicos para induzir alguém a aceitar uma ideia, uma atitude, ou realizar uma ação. Aprofundando o conceito: emprega-se argumentos, com o propósito de conseguir que outros indivíduos acessem via compreensão, (distorcendo a realidade para revelar sua natureza oculta) uma dada realidade transfigurada, uma nova concepção de vida, de circunstâncias, de mundividência em suma.
Chama atenção como os contos de Anderson Fonseca convocam o nosso testemunho (Sr. Bergier & outras histórias, Editora Penalux, Guaratinguetá-SP, 2016, 88p.). Se impõem de chofre. Algumas histórias surgem em seu processamento próprio, no ponto exato em que se confunde com os fatos da vida: Vejamos:
“Tinha por costume, um ilustre cientista, Dr. Andrea Svevo, visitar-me às tardes de domingo para conversarmos assuntos que a nós dois suscitavam interesse. Habitualmente às 14h quando chegava, sentava-se – na poltrona que fica à direita da estante de livros – coçava o bigode, acendia o cigarro, e depois de lançar o fumo no ar, dava início ao diálogo que se alongava até o fim da tarde. O hábito de sua visita – exata e assídua – tornou-se para mim um rito. Até o dia em que se atrasou. No começo da noite ele apareceu como uma ave de mau agouro, assim repentinamente; entrou arrebatado, tirando os sapatos às pressas, procurando com o olhar o assento. Estava agitado; a fala trêmula e com espasmos. Entre balbucios repetia que tinha algo a me contar.”
Sejamos sinceros. Instigante, persuade-nos não? Como não ter a curiosidade despertada? Como não querer saber o “e dai”? É o que sentimos ao ler o conto “O sonho”, um dos 9 reunidos no livro. Em todos os textos parte-se do irreal para o real, ou vice-versa, num breve instante. A fusão perfeita em favor de uma ficção completa e incômoda.
O conto “Sr. Bergier”, (notória alusão à Jacques Bergier -1912/1978, engenheiro químico francês que, na década de 60, divulgou o realismo fantástico em colaboração com a revista Planète). É uma ficção que se desdobra permitindo a liberação de espaço para a imaginação, valendo-se menos pelo que diz, do que pelo que sugere. Enfoca a temática do duplo ou fenômeno da multiplicação do protagonista. Narrativa, estruturada em formato epistolar, descreve a desgraça de um homem que desenvolve experiências de onde materializa um duplo de si, e que afinal atua como um invasor, um “outro” que o substitui socialmente.
Em “O presente de Evaristo” o protagonista vive a insólita situação de ter a face deformada por corvos. Adapta-se ou se “resigna”, como se a vida fosse governada pelo absurdo, mas arquiteta uma vingança secreta contra os que o repudiam, simplesmente porque, mais do que a questão da deformidade, Evaristo não se deixa moldar pelo desejo dos outros. Uma realidade que se transfigura (com um subjetivismo lúcido diga-se), e se recria sob a forma de entidade ou situação simbólica. Aquilo que todos nós, ao menos uma vez na vida já fizemos, ainda que furtivamente. Um projeto de vingança. Já em “O Bibliotecário” a criatividade formal se entranha mais no imaginário e na suscetibilidade do autor, do que na pura e simples denúncia da ausência do habito da leitura. Trata-se da história triste de um homem apagado, funcionário de uma biblioteca por 36 anos, e que nunca leu sequer um livro. Convite a refletir naquilo – de bom e de libertador-, que pode estar bem perto de nós, e ainda assim, não vemos, ou não queremos ver. No caso específico deste conto, por puro comodismo.
Em “The New York Times” ocorre indubitavelmente aquilo que já referimos, a força persuasiva do fantástico acionada por um grande criador, arma, sem dúvida, nossa insensibilidade ou sensibilidade embotada, para ver até que ponto uma sociedade completamente manipulada por um sistema de informação de massas, bloqueia inteligências e sentidos, e faz da vida um jogo cego de autômatos.
Certas situações vividas pela humanidade atualmente, de tão ilógicas e aberrantes, convocam a ficção fantástica para que melhor desnude a face encoberta pelos condicionamentos. “Babel” é um conto que discute nossa confiança na tecnologia virtual. Seu avanço a ponto de a Internet ser “substituída por uma conexão neural”. A “Internet passou a existir dentro do cérebro humano”. O que pensar?
Revela-se em “O sonho”, o lado onírico da ficção fantástica. O jogo intemporal permite, mercê de uma elaborada técnica narrativa, que uma personagem profetize, sonhe e testemunhe mortes. Uma peça labiríntica, caricatura onírica de uma realidade perturbadora. Admirável. Mas também é preciso dizer que ao voltarmos ao tema do duplo como se deu em “Sr. Bergier” e “The New York Times”(neste, aparece o duplo do Jornal que dá nome ao conto), tal temática embora com variações de enfoque (ora como metáfora da ânsia pela imortalidade, ora como inquirição sobre a dualidade existencial do ser, ou ainda como busca da identidade) torna por demais enfática a ideia, que por si só exige empatia e cumplicidade do leitor. Talvez não encontre contornos perceptíveis da sutileza do enfoque, em certas inteligências mais cartesianas. A repetição do tema, embora sob aspectos variados pode causar cansaço. Ademais, em estrada pisada e repisada corre-se o risco de alienar inventiva e percepção.
“Loja 203”, é fenomenal! Dois velhos se encontram em uma barbearia antiga. Um é o barbeiro, o outro, cliente. O cliente Gil, no momento do corte, percebe em cima da penteadeira um jornal e se detém, em uma notícia que não somente lhe chama a atenção, como o torna aflito. Até aí nada de fantástico.
“ - Diz aqui que esses onze tinham sido demitidos da empresa e ontem havia sido o último expediente deles. Que babacas, se mataram porque foram demitidos. Onde estavam com a cabeça? Bando de imbecis, isso que eles são, imbecis. - E Gil bateu nas folhas do jornal como se bofeteasse alguém. - Essas pessoas não dão valor a vida? - Francisco estava calado, observando o fio de metal da tesoura, romper o fio de sangue do cabelo de Gilberto.”
No correr da narrativa, ao dar-se brevíssima e concisa explicação sobre a vida de cada uma das personalidades suicidas, emerge uma trama de relações e inter-relações verdadeiramente fantástica, (no melhor sentido criativo que essa palavra pode assumir), desnudando as máscaras de cada um e aquela incapacidade de alguém sentir-se feliz na sociedade em que vivemos. Que nos constrange violentamente, e nos leva a cometer todo tipo de desatino. Claro; como não? Se somos um bando de infelizes a habitar a terra? (talvez haja ali a sugestão de que o mal recai sobre todos; é uma possibilidade de leitura ante muitas). Um conto admirável. E finalmente, o conto “Pétala” de desfecho lírico e encantador, fruto de um jogo de ambiguidades e tessitura poética.
A Literatura feita por Anderson Fonseca, revela uma fantasia que projeta enigmas, os quais clamam não por uma decifração, porém por decifrações. Trata-se um criador em busca do sentido lato, o imaginário é o seu limite. Ótimo. Horizontes existem para serem empurrados e alargados pelos ficcionistas. Em outras palavras, para enxergarmos o real. Resgatar elementos importantíssimos que talvez estejam perdidos em meio a um mundo onde a razão e a ciência tiveram predominância, sem atentarmos para outros valores que nos são intrínsecos: a intuição humana, a fé e a crença. Elementos inexplicáveis segundo leis físicas que regem o universo, queiramos disso saber ou não.
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