Lucas 20/07/2020
Dos mais recônditos terrestres ao céu: A redenção na suprema obra arquitetônica das letras do Ocidente
Três partes. Cem cantos. Quatorze mil, duzentos e trinta e três versos. Sete séculos de existência. Este é um resumo numérico e direto d'A Divina Comédia, obra-prima do poeta e político italiano de Florença Dante Alighieri (1265-1321).
O indivíduo que não adota as ciências humanas como sua "formação acadêmica" tem essa compulsão por traduzir em números algo que, mesmo oferecendo um panorama comum a todos, é totalmente incapaz de traduzir a grandeza universal e atemporal desta obra. A Divina Comédia é um marco, um pilar literário, um escrito que redefiniu conceitos, de uma riqueza imaginativa tão abrangente que mesmo que nunca leu um livro completa na vida é capaz de adquirir.
Lançado num intervalo de quatorze anos (entre 1304 e 1321, pouco antes da morte do autor), A Divina Comédia condensa uma infinidade de lendas, referências mitológicas, medievais e tantas outras que acabaram dando origem a um conceito sólido por muitos não acreditado, mas por todos conhecido: o destino do indivíduo, de sua alma, após a morte. É dessa obra que se adquiriu o conceito de punição ao pecador após a morte, do inferno propriamente dito, onde os pecaminosos pagam indefinidamente pelo mal que cometeram em vida. E também o conceito de redenção, de paz e conforto que está destinado aos que fizeram o bem enquanto estavam no plano terrestre.
Talvez por isso o Inferno, primeira parte da obra e a que mais contém elementos alegóricos seja a mais conhecida pelos leitores. Também é certamente a mais lida: não é raro que se encontrem relatos de leitores que desistem da leitura após o término dessa parte inicial. Um pecado literário, já que a estrutura do romance (poema épico que é, sim, um estilo difícil de ser assimilado por quem não é especialista nesse tipo de construção literária) vai revelando nas partes seguintes (Purgatório e Paraíso) centenas de outras passagens marcantes.
A Divina Comédia, que é narrada e protagonizada pelo próprio Dante Alighieri, começa com o encontro dele com o poeta romano Virgílio (70-19 a.C.), grande símbolo da cultura latina, autor do épico Eneida, tido por Dante como o seu mestre literário, seu grande ídolo das letras. É Virgílio quem toma Dante para si, que estava perdido numa "selva selvagem" para uma jornada de redenção de sua alma e que passará pelos confins da terra e culminará num céu superior.
Virgílio, como guia, assume esse viés da razão, essencial para o entendimento das principais alegorias mitológicas que formam todo o Inferno e também necessárias à compreensão do Purgatório. Pela óptica dele, Dante explica ao leitor as metáforas que vão se seguindo. O Inferno, como já citado, é realmente a parte mais rica em termos de referências e construção de todo um entendimento que persiste ainda hoje no imaginário popular. Em termos práticos e até "arquitetônicos", ele é um enorme funil, formado por um vestíbulo e nove círculos, "empilhados" um abaixo do outro e que tratam de quatro pecados: incontinência, violência e bestialidade, fraude e traição, cada um deles se desdobrando em várias espécies novas (há três tipos de violência, por exemplo: contra o próximo, contra si próprio e contra Deus, cada um com punições diferentes). Uma pintura conhecida do pintor italiano Sandro Botticelli (1445-1510) dá essa visão "cônica" do Inferno em suas múltiplas camadas.
Por mais que A Divina Comédia tenha que ser lida plenamente, é inegável que o Inferno oferece uma compreensão mais elaborada e precisa do andamento da jornada de Dante e Virgílio. Aqui, as divisões entre círculos e seus sub-componentes são mais palpáveis ao leitor, diante das dificuldades narrativas naturais que um poema épico oferece. Mas, contudo, ele possuiu uma capacidade reflexiva menor. É também a única das três partes onde a jornada do protagonista é "para baixo", até o último nível do Inferno. E, por isso, os horrores são crescentes, ao passo que nas outras duas partes essa jornada é toda ascendente.
Superado o Inferno, há o Purgatório, simbolizado por uma montanha onde Virgílio e Dante sobem até o seu cume, que é o Paraíso Terrestre. Essa subida é marcada pela presença de milhares de almas que, arrependidas na hora da morte, estão "expiando" seus pecados a fim de entrarem no Paraíso. Aqui, há a presença dos sete pecados capitais que separam os expiadores: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza (junto com os pródigos), gula e luxúria. Por ser uma "ponte" entre o Inferno e o Paraíso, o Purgatório é a parte mais original da obra, aquela em que Dante mais empregou seu conhecimento e imaginação já que, diferente das outras partes, não havia muitas teorias e lendas que simbolizassem um meio termo entre um mundo de punição e a paz eterna.
Ao adentrar no Paraíso, aparece na narrativa o símbolo do amor, em todas as suas faces: Beatriz, a grande paixão terrena de Dante, sua "musa inspiradora", que o guiará nessa última parte da jornada. Pela visão cosmológica de Dante, o Paraíso é formado por nove esferas, que giram em velocidades diferentes e que não possuem distinção de beatitude entre si. Nessa parte final, pode ser antecipado o encontro de Dante com muitos santos, como São Pedro, São Tiago, São João Batista, entre outros importantes personagens da Bíblia, que fazem da metade final do Paraíso algo sublime (o desfecho da jornada, no último canto, oferece uma visão alegórica maravilhosa que o leitor jamais esquecerá).
Feita esta análise separada das partes, o que pode ser (ainda) antecipado ao leitor é o caráter contextual muito palpável que Dante reserva à ambientação de cada uma delas. Se no Inferno os versos transmitem uma sensação sombria, de medo e repulsa, totalmente contrária é esta percepção no Paraíso, onde a luz, tanto no sentido literal quanto metafórico, assume um protagonismo relevante. Do mesmo modo, o Purgatório é construído numa atmosfera cinza, que não é repugnante nem colorida, simbolizando assim um "meio-termo" entre as duas extremidades do épico.
Outro ponto que precisa ser destacado é a capacidade do autor em colocar simplesmente tudo o que havia na sociedade italiana (em especial da terra natal de Dante, Florença) dentro da comédia. Essa visão é corroborada pelo crítico austríaco radicado no Brasil Otto Maria Carpeaux (1900-1978) que, por meio de um excelente texto introdutório exposto na edição compacta da Editora 34, defende essa visão de abrangência eterna que a obra possui. Se a validade d'A Divina Comédia é transcendental, é necessário lembrar que o mundo do começo do século XIV ainda não tinha uma ideia elaborada da política como função social. Assim, religião e o que poderia ser chamado de política nos dias atuais se confundiam numa espiral, onde muitas vezes a primeira prevalecia. O próprio Dante se inseria dentro deste emaranhado, já que ele passou boa parte da vida exilado de sua amada Florença em função de divergências com líderes religiosos. Sobram, na epopeia de Dante, menções a personalidades importantes da época, que por mais que não soem conhecidas ao leitor que não é especialista em cultura italiana, simbolizam esse retrato daqueles tempos, marcado por brigas, discussões e muita corrupção (são momentos lendários os que surgem quando a corrupção de membros do clero é discutida). Toda a obra é, em outra concepção, uma coletânea enorme de pequenas histórias, reais e mitológicas, que trarão ao leitor os mais variados sentimentos.
Além do já batido escopo alegórico, A Divina Comédia precisa, em qualquer comentário que se faça a seu respeito, ser reconhecida como um monumento histórico das letras, especialmente as italianas. Esta obra é a consolidação do italiano atual, já que foi escrita originalmente em dialeto florentino (em detrimento ao latim, que era o idioma comum de todas as obras da época. Importante acrescentar que A Divina Comédia sobreviveu a mais de um século até a invenção da imprensa em 1455, que possibilitou uma difusão maior de todos os materiais escritos, revolucionando aquilo que hoje se entende como acesso à informação.). A linguagem usada, a base do idioma italiano atual, representa não apenas a consolidação da língua, mas traz a conclusão de que Dante foi o primeiro escritor do Ocidente mais preocupado na difusão literária às massas do que em modismos ou padrões que dificultavam o acesso a escritos por parte da camada mais popular de indivíduos.
Esta questão de escrever o épico num idioma que proporcionasse um entendimento coletivo de seus escritos é realmente genial, mas ela fica num segundo plano diante daquilo que é mais marcante em termos estéticos da obra-prima: a sua construção simétrica e exata. Os cantos são divididos em estrofes com três versos, os chamados tercetos, que possuem uma concepção rítmica própria: o primeiro e o terceiro verso do terceto rimam entre si; o segundo verso deste terceto respectivo rimará com o primeiro e terceiro verso do terceto seguinte e assim por diante. Isso, óbvio chama a atenção por dois motivos: o mais aparente, relacionado à dificuldade que Dante teve em conceber todos os versos seguindo esse esquema e o oculto: se um dos mais de quatorze mil versos for tirado do seu lugar, todo o ritmo será interrompido. A Divina Comédia é, por isso, a única obra literária que se tem notícia que possui uma "arquitetura" própria, que é sólida, amarrada e intransponível.
Manter essa esquematização é uma tarefa complicadíssima para os outros idiomas, que, felizmente, foi cumprida no português tupiniquim através de Italo Eugenio Mauro (1909-2003). Oriundo de uma família italiana, Italo era capaz de recitar todo o Inferno "de cor". Além disso, ele se dedicou por mais de 15 anos a traduzir toda A Divina Comédia para o português mantendo essa simetria entre os tercetos. É o resultante desse esforço que está na excelente edição compacta da obra da Editora 34, acessível sob aspectos financeiros e, principalmente conceituais (não só pela tradução, mas pelas centenas de notas de rodapé e excelentes textos introdutórios antes de cada canto, tudo elaborado pelo tradutor, além do já citado texto de prefácio de Otto Maria Carpeaux).
Numa realidade tão marcada por imediatismo e falta de compromisso como a atual, A Divina Comédia precisa ser entendida como uma obra cujas ressalvas precisam ser feitas dentro de um contexto de respeito, seja ao próprio Dante Alighieri, que com sua imaginação e algumas lendas esparsas criou toda uma compreensão do "post mortem" que praticamente todos conhecem ao menos de forma superficial, como também de consideração ao esforço de tradução, que neste caso provém de Italo Eugenio Mauro. A leitura exige compromisso (e isso não é restritivo ou negativo, pelo contrário); é difícil em alguns momentos (especialmente para leitores menos eruditos), se arrasta em outros, mas estas e outras ressalvas são incapazes de alterar uma vírgula (ou um verso) daquilo que a leitura se torna após concluída: uma inesquecível jornada de redenção, permeada por incontáveis referências míticas, religiosas, históricas e astronômicas. É, definitivamente, um livro sólido e amplo, com uma beleza variada comparável às estrelas.