Roberto Soares 11/04/2021PurgatórioDando prosseguimento à sua jornada espiritual pelos planos do outro mundo, neste segundo cântico da “Divina Comédia” acompanharemos os poetas Dante e Virgílio em sua marcha pelo Purgatório: uma montanha escarpada, que se eleva solitária no meio do Oceano. Nos seus flancos, que vão rodeando pelas laterais do monte até o seu topo, estão escavados terraços, onde as almas irão cumprir suas penas pelos pecados cometidos em vida, até que possam, por fim, ser admitidas no Paraíso.
Diferentemente daqueles que padecem do castigo eterno no Inferno, o Purgatório encerra os que, ainda em vida, se arrependeram de suas transgressões, de modo que serão julgados e cumprirão sua pena apenas por um período correspondente ao tempo em que viveram em pecado. Ao fim deste período, tendo sua culpa expiada por meio das provações sofridas no Purgatório, essas almas estarão purificadas para ascenderem ao reino dos Céus, que é o objetivo designado pelo desejo divino.
Teremos aqui 7 cornijas (que podemos como os andares que vão subindo e rodeando a montanha), cada uma designada para a penitência de um tipo de pecado da natureza dos sete vícios capitais (orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria). Na base da montanha, está o antepurgatório, que abriga aqueles que se arrependeram apenas na hora da morte, e este “atraso” será penalizado por um longo período de limbo antes de iniciar a expiação propriamente dita. Já no topo do monte situa-se o Paraíso Terrestre, o agora desabitado Jardim do Éden em cujas águas as almas serão expurgadas para continuarem seu caminho rumo ao reino celeste.
Achei o “Purgatório” um pouco mais complexo que o “Inferno”, tanto na leitura quanto na compreensão. A fala de Beatriz num dos últimos cantos, de que sua comunicação elevada é um reflexo da infinita superioridade da sabedoria divina frente à limitação do conhecimento humano, me fez pensar um pouco no porque dessa elevação do tom do poeta, e com isso presumo que vou padecer no “Paraíso” (afinal, já deu pra aprender que Dante não dá ponto sem nó). Não que eu pense nisto como um ponto negativo; pelo contrário, inclusive gostei deste segundo cântico tanto quanto ou mais do que o primeiro. A profundidade dos temas discutidos pelos poetas durante os “arrazoados” de Virgílio, como a condição do amor e como ele pode igualmente levar ao bom e ao mau caminho, o arrependimento, a morte, o livre-arbítrio, a natureza da alma, o real e o ilusório, é de uma riqueza incomparável, criando aqui alguns momentos realmente luminosos e tocantes, como o encontro com as almas dos gulosos.
Além disso, senti aqui que o conteúdo alegórico e o simbolismo, que na minha opinião são os pontos altos de toda a obra e os que mais me interessam, assumiram um papel ainda mais significativo e substancial, o que podemos ver por meio dos movimentos dos anjos, os cantos, os sonhos de Dante e, principalmente, toda a passagem pelo Paraíso Terrestre.
Depois de deixar seus leitores aterrorizados com os horrores infernais, Dante irá apaziguá-los apontando o primeiro passo para se livrar da danação eterna: o arrependimento sincero dos pecados cometidos e a expiação da culpa por meio do cultivo de virtudes e boas ações. Quanto mais cedo isso acontecer, melhor. Isso é parte do seu plano de promover, por meio da sua poesia, a salvação moral de uma sociedade florentina que ele via cada vez mais afundada no vício e na ruína. Além de colocar o leitor a mercê de sentimentos e reflexões que poucas obras têm o poder de suscitar nessa dimensão, “A Divina Comédia”, apesar do desafio que é toda a sua complexidade, é uma obra que, dizendo pela minha experiência até aqui, muda sua forma de pensar a conduta alheia e a própria, acrescentando elementos de cunho moral, histórico e literário que, quando atingem sua consciência, lá permanece e passa a servir de bagagem para uma vida inteira.