Roberto Soares 01/04/2021Inferno"DEIXAI TODA ESPERANÇA, Ó VOS QUE ENTRAIS"
Eis a fatídica mensagem escrita sobre os portais de entrada do Inferno de Dante, prenúncio de uma das viagens mais extraordinárias de toda a Literatura.
Perdido em uma selva escura e desviado do caminho divino, Dante é resgatado por Virgílio, o célebre poeta da "Eneida", que se oferece para guia-lo por uma viagem rumo à redenção; e com isso, rumo à Deus. Porém, antes de alcançar o Paraíso, ele precisará primeiro atravessar outros dois planos do outro mundo: o Inferno e o Purgatório.
Oferta aceita, os dois poetas partem para seu tenebroso caminho pelo reino de Lúcifer, uma imensa cratera que vai afundando para as profundezas do globo até alcançar o centro da Terra (um rastro deixado pela queda do anjo rebelde). O Inferno então é revelado como sendo dividido em 9 círculos (pode-se pensar como se fossem andares, embora a ideia proposta não seja exatamente esta), que abrigam as almas dos pecadores que receberam seu castigo eterno. Em cada um destes círculos, um pecado diferente é punido, e a pena aplicada está diretamente relacionada, em sua forma e força, à transgressão cometida pela alma castigada.
No seu lúgubre caminho, Dante irá narras as "dantescas" cenas com as quais irá se deparar: uma multidão de almas atormentadas que, em vão, soltam gritos e gemidos de agonia face à sua eterna desgraça. São almas dilaceradas, queimadas, afogadas e soterradas; almas condenadas a um perpétuo caminhar e arrastar de pesos; almas subjugadas à fúria de serpentes, demônios e bestas cuja única ocupação é espalhar dor e aflição por entre aqueles desventurados. É um penar sem fim e sem pausa, que deixam o leitor arrepiado. São momentos de horror, repugnância, choque: enfim, você não vai sair dessa leitura com seus pontos fracos intactos (no meu caso, meu pânico de cobras).
Achei interessante também quando via o destino que Dante imaginou para algumas figuras históricas e míticas, como Aristóteles, Homero, Ulisses, Aquiles, Cleópatra, Helena de Tróia, Maomé, Mascus Brutus, Judas Iscariotes, entre outros.
Para além de acompanhar essa poesia pelas ações e pela estética, um melhor entendimento e aproveitamento pode pedir certa noção do contexto histórico-cultural da época de Dante, que se refere a uma concepção de vida e de mundo diversa da nossa. Imerso em um cenário de junção entre a Antiguidade Clássica e o Cristianismo da Idade Média, a visão de homem de Dante é a de um ser dotado de uma alma criada, delineada e dominada completamente por Deus, e cuja vida deve ser empregada inteiramente na prática de virtudes que o aproximem do ideal divino e fundamentadas no bem e na verdade. Tal conduta mira não apenas a salvação espiritual, mas também a plenitude de caráter e de intelecto, através dos valores da filosofia teológica.
Em oposição à essa vida dedicada aos dons divinos eternos, está aquela entregue aos bens e paixões mundanas, que levam à incontinência, à violência, à fraude e traição. Elas desviam a consciência do homem para o pecado, a perdição e a limitação à sua existência terrena, sem considerar o além-túmulo e incapaz de apreender os caminhos e mistérios da providência.
Nesse sentido, podemos pensar o "Inferno" de Dante como um apelo do poeta à salvação moral da sua sociedade, que ele considerava perdida por estar cada vez mais apegada às paixões mundanas. Ao descrever as penas a que seriam condenados aqueles que morressem sujeitados a este ou aquele pecado, ele abre caminho para propor aos seus leitores, no desenrolar do poema, a redenção moral como fuga daquela perdição eterna.
Para isso, o poeta lança mão de uma poesia das mais incríveis que eu já li (no meu pódio, perde pessoal só pra "Eneida" e pra "Ilíada"). Não sei o que mais me impressionou aqui: se o lirismo, o conhecimento cultural enorme, a imaginação incomparável, a riqueza estética ou a habilidade descritiva. O professor Carmelo Distante diz que "o mérito do gênio de Dante é que ele pensava por imagens", e para quem, como eu, é apaixonado pelo campo dos símbolos, "A Divina Comédia" é uma obra-prima inigualável. Além de ser mais uma daquelas em que, mais do que o deleite, a poesia oferece também o retrato de uma consciência moral, religiosa e cultural de uma das sociedades mais relevantes para a história ocidental, que é a Itália medieval.