Satã herético

Satã herético Alain Boureau




Resenhas - Satã herético


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AleixoItalo 23/06/2021

Um dos estereótipos mais comuns da Europa medieval, é o de uma era sombria onde a igreja perseguia os pagãos a ferro e fogo. Mas também foi uma era onde o misticismo e magia estiveram em alta (principalmente através da astrologia e alquimia). Quando então se deu esse divisor de águas? Quando o diabo passou de coadjuvante para inimigo real?

'Satã Herético' é uma dissertação histórica sobre as mudanças que ocorreram nos bastidores da igreja, que passou de uma posição apática perante os demônios a uma preocupação ativa com esses entes.

Debates teológicos, legislativos e naturais conduzem as mudanças que confluem na inquisição como conhecemos: a heresia antes considerada concernente apenas ao pensamento, passa a englobar outras práticas mundanas; novas interpretações de mundo sobre doenças psicológicas e natureza humana mudam a suscetibilidade do homem ao espírito; novas leis criadas para punir os hereges; e o principal, os "demônios" passam de submissos ao poder divino para poderosos adversários de Deus.

Apesar do cunho basicamente acadêmico, é um conteúdo interessante onde o autor discorre e mostra através de uma vasta documentação, a batalha pessoal do papa João XXII contra a ordem dos Franciscanos que acabou levando à tais transformações.

No fim é o velho teatro pelo poder, onde o Papa luta para manter sua moral e posicionar melhor suas peças, os intelectuais que discutem entre si defendendo sua visão de mundo, e uma própria postura defensiva da igreja contra um mundo cada vez mais secular. São os bastidores da história que normalmente não vemos!
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Gustavogl 16/06/2021

Na Antropologia escolástica dos demônios, é dito que eles não têm ciência de que estão nos induzindo ao mal. Como eles foram nutrindo o amor a si mesmos foram empurrados por Deus e perderam o livre-arbítrio. Eles praticarem o mal é como se fosse um voto às avessas e se sentem tão exaltados pela danação que não a entendem completamente apresentando um comportamento maníaco-depressivo.
Não, esse não é um livro de terror. É um livro de filosofia e direito canônico. De como a Igreja Católica (onde tem igreja, tem sossego?) estendeu a cobertura do que se entendia Heresia (que era crime) para a criação de inimigos em comum e assim reforçar a amálgama Igreja-Monarquias por mais centenas de anos.
A Demonologia veio para demonstrar que o cramunhão não estava de brincadeira e que quem praticasse suas artes estava sendo um herege. Neste bolo entraram os necromantes, os magos, os bruxos, sobrou para judeus e muçulmanos também porque seria interessante que as monarquias tivessem um motivo divino pra fazer aquela invasão marota.
Foi muito rico para mim entender como a leis precisam estar amparadas por princípios filosóficos. E que mesmo que a vontade seja fazer algo para si, tem que fazer Direito.
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brunossgodinho 23/04/2017

A Idade Média e sua maternidade do moderno
Na série de livros que a Editora da Unicamp optou por traduzir em sua Coleção Estudos Medievais, Satã herético é o segundo livro que leva em seu título a palavra "nascimento", ao lado de O nascimento do cemitério, de Michel Lauwers. Os esforços dos medievalistas franceses, desde há muito, tem demonstrado como é necessário dar à Idade Média o que é seu de direito e, muitas vezes, de fato.

Este livro de Alain Boureau restitui um desses fardos ao Ocidente medieval: a demonologia, que serviu de base às insanas perseguições às bruxas entre os séculos XV e XVII, tem forte base na renovação do pensamento escolástico entre os séculos XIII e XIV. Nesse sentido, restitui-se à Idade Média o peso de um dos episódios mais repressivos da história europeia. Porém, é na restituição desse fardo que se faz perceber como esse período (designado pelo autor como Idade Média central) teve poder criativo, em várias instâncias da vida.

Se pudermos resumir a tese de Boureau, ela se dá em três mudanças fundamentais nas concepções da vida cotidiana. A primeira é a instituição jurídica da heresia sob outras bases, ampliando-a para abarcar os feiticeiros ou bruxos. A segunda mudança é o deslocamento das concepções de Tomás de Aquino sobre os demônios e o consequente aumento dos poderes diabólicos na Terra. A transformação final se dá na própria consciência, na subjetividade dos homens e mulheres medievais: uma nova concepção de sujeito, que quebra a unidade subjetiva e cria (como diz o autor) poros nos quais a divindade e os demônios podem se imiscuir e dominar os indivíduos.

Com a identificação dessas três mudanças nas convicções da sociedade da Europa medieval, Alain Boureau cria um quadro mental que é capaz de receber aquilo que a historiografia anteriormente só acreditava ter sido possível de se desenvolver na Era Moderna. Vale notar que não é intenção do autor deslocar o evento de perseguição às bruxas para o século XIV, mesmo porque factualmente é impossível. Sua pesquisa estabelece, na verdade, as raízes medievais de um dos principais e mais disputados eventos da história moderna europeia. Leitura de poucas páginas, mas de grande fôlego, esse livro de Alain Boureau torna-se contribuição importante não apenas ao tema da bruxaria, mas ao universo mental e intelectual da Idade Média em seus séculos finais.
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