brunossgodinho 23/04/2017A Idade Média e sua maternidade do modernoNa série de livros que a Editora da Unicamp optou por traduzir em sua Coleção Estudos Medievais,
Satã herético é o segundo livro que leva em seu título a palavra "nascimento", ao lado de
O nascimento do cemitério, de Michel Lauwers. Os esforços dos medievalistas franceses, desde há muito, tem demonstrado como é necessário dar à Idade Média o que é seu de direito e, muitas vezes, de fato.
Este livro de Alain Boureau restitui um desses fardos ao Ocidente medieval: a demonologia, que serviu de base às insanas perseguições às bruxas entre os séculos XV e XVII, tem forte base na renovação do pensamento escolástico entre os séculos XIII e XIV. Nesse sentido, restitui-se à Idade Média o peso de um dos episódios mais repressivos da história europeia. Porém, é na restituição desse fardo que se faz perceber como esse período (designado pelo autor como Idade Média central) teve poder criativo, em várias instâncias da vida.
Se pudermos resumir a tese de Boureau, ela se dá em três mudanças fundamentais nas concepções da vida cotidiana. A primeira é a instituição jurídica da heresia sob outras bases, ampliando-a para abarcar os feiticeiros ou bruxos. A segunda mudança é o deslocamento das concepções de Tomás de Aquino sobre os demônios e o consequente aumento dos poderes diabólicos na Terra. A transformação final se dá na própria consciência, na subjetividade dos homens e mulheres medievais: uma nova concepção de sujeito, que quebra a unidade subjetiva e cria (como diz o autor) poros nos quais a divindade e os demônios podem se imiscuir e dominar os indivíduos.
Com a identificação dessas três mudanças nas convicções da sociedade da Europa medieval, Alain Boureau cria um quadro mental que é capaz de receber aquilo que a historiografia anteriormente só acreditava ter sido possível de se desenvolver na Era Moderna. Vale notar que não é intenção do autor deslocar o evento de perseguição às bruxas para o século XIV, mesmo porque factualmente é impossível. Sua pesquisa estabelece, na verdade, as raízes medievais de um dos principais e mais disputados eventos da história moderna europeia. Leitura de poucas páginas, mas de grande fôlego, esse livro de Alain Boureau torna-se contribuição importante não apenas ao tema da bruxaria, mas ao universo mental e intelectual da Idade Média em seus séculos finais.